Como cobrir o naufrágio do Titanic?
Edição 110: medo e delírio em Brasília + marco temporal + MacBride revisitado
Olá, assinante!
Até o reino mineral já percebeu que notas de repúdio e editoriais não fazem nem cócegas nos fanáticos que se apossaram da vida nacional. Sem qualquer pudor, eles atropelam leis, ignoram limites e tocam o terror.
Não bastasse o chorume, passaram a sequestrar símbolos pátrios como o verde-e-amarelo, a bandeira nacional e até o 7 de setembro. Hoje, a ressaca cívica está forte, mas não há tempo para recuperação: o jornalismo está no convés do navio, tendo que narrar a água entrando…
07/SET/2021
Teve selfie com o Queiroz, teve pênis gigante inflável e teve o presidente da República xingando Alexandre de Moraes e dizendo que não vai mais cumprir suas decisões. Como não poderia faltar, teve intensa cobertura jornalística. Os veículos do Grupo Globo repetiram que as manifestações traziam pautas antidemocráticas, enquanto que Folha de S.Paulo, UOL, Veja e IstoÉ não douraram a pílula: o tom dos atos foi golpista. Band e CNN foram hesitantes e, ao longo do dia, chegaram a passar pano. À noite, o SBT Brasil reproduziu o discurso de Bolsonaro na avenida Paulista na íntegra (!). No encerramento do telejornal, os apresentadores não disfarçaram a cara de enterro.
Não é só constrangimento. A cobertura diária de um tempo tão caótico como o nosso traz dilemas difíceis de resolver:
Como mostrar o presidente atiçando seus apoiadores sem ajudar a espalhar seu discurso inflamatório?
Jornalistas devem abandonar o tom moderado e dar os nomes aos bois ou esta atitude aumenta o radicalismo político?
É possível cobrir normalmente um governo que se recusa a atuar dentro da normalidade?
Paciência, otimismo e ingenuidade são virtudes hoje em dia?
O que os jornalistas podem fazer para não repetir a orquestra do Titanic, que continuou a tocar passivamente quando tudo estava perdido?
Tem alguma resposta? Escreve pra gente: objethos@gmail.com.
VITRINE DOS INDEPENDENTES
Antes de passarmos pra mais um bloco do bom jornalismo que vemos por aí, uma retificação. Mencionamos o Jornal Dois na edição 108, mas erramos a cidade: eles são de Bauru, e não de Barueri!
Correção feita, segue o jogo:
Não foi só o verde e amarelo que deu as caras no 7 de setembro. O Grito dos Excluídos e Excluídas esteve presente em várias cidades brasileiras, incluindo Recife, pelo 27º ano seguido. Em muitas outras cores, são frades franciscanos, lideranças indígenas, feministas, evangélicos, policiais antifascistas e estudantes, conta a Marco Zero.
Núcleo Jornalismo monitorou a repercussão dos atos antidemocráticos de ontem nos perfis do Twitter de políticos brasileiros.
No Brazilian Report, Amanda Audi escreve sobre a censura na TV Senado, após a demissão de uma jornalista que desmentiu uma informação dada pelo senador Marcos Rogério (DEM).
SABER FAZER
O Supremo Tribunal Federal ainda não bateu o martelo sobre a questão mais fundamental dos povos indígenas no momento, o tal do Marco Temporal. Se você ainda não se convenceu da importância do tema, João Filho (The Intercept Brasil) traz um exemplo: reportagens do Grupo Bandeirantes ouviram apenas o lado dos ruralistas em reportagens sobre essa queda de braço.
Se ouvir todos os lados é fazer o básico no jornalismo, preparar-se para coberturas espinhosas também é. Não sabe por onde começar em pautas socioambientais? Abraji e Fiquem Sabendo têm dicas sobre quilombolas, indígenas e meio ambiente. A Énois também fala de cuidados éticos e técnicos para cobrir questões dos povos indígenas, como respeito à espiritualidade e linguagem não-estereotipada.
Portanto, cuidado para não cair em certas picaretagens ou comprar gato por lebre…
CPI & MUITO MAIS
Nas últimas semanas, abastecemos o site do objETHOS com novidades. Veja:
CPI, corrupção fardada e o papel da imprensa, por Álisson Coelho.
Quem é o “vilão” da democracia?, por Mariane Nava.
CPI da Covid: faltou jornalismo investigativo na imprensa, por Carlos Castilho.
Plataformas de newsletters e a (in)dependência de jornalistas solo, por Lívia de Souza Vieira.
RADAR
Nada mais, nada menos que dez artigos e um e-book passaram pelo nosso radar nos últimos dias. Vamos separar em dois blocos pra você saborear com calma.
A fotografia tem pouco destaque na legislação jornalística brasileira e é tida como atividade meramente técnica, aponta Agda Aquino. O que predomina nos documentos é a figura do jornalista associado a um intelectual que trabalha majoritariamente com o texto.
Sem Ouvidoria e Conselho Curador, a comunicação pública da EBC é cada vez mais refém do governo. Akemi Nitahara e Cristina da Luz explicam por que o desmonte dos mecanismos de participação social afeta a todos nós.
Estudo em três sites da imprensa negra identificou número alto de fontes independentes nos textos jornalísticos, em detrimento das oficiais. Para Valmir de Araujo e Cicilia Peruzzo, é sinal de que os meios valorizam mais os personagens cotidianos sem vínculo com governos ou organizações. No entanto, também são recorrentes as matérias sem nenhuma fonte visível ao leitor, o que pode comprometer a credibilidade das publicações, afirmam.
Jornalistas do norte do México enxergam as redações cada vez mais como um espaço de transição, seja porque não conseguem construir uma carreira duradoura nelas ou por não estarem satisfeitos com as condições de organização do trabalho. Víctor Hugo Reyna conclui que elas se tornaram um “não-lugar” e estão perdendo a identidade central no jornalismo.
Um país atravessado pelo “imaginário da morte”: Denise Gomes e Renata Ribeiro analisaram a representação dos hospitais em reportagens do Jornal Nacional.
MACBRIDE REVISITADO
Como jornalistas negociam a produção de determinadas reportagens com seus superiores hierárquicos? Três pesquisadores investigaram as táticas de resistência adotadas por profissionais paranaenses nas redações.
Canais de rádio e TV em cidades com baixo índice de desenvolvimento humano raramente oferecem conteúdo informativo rico e plural. O motivo? Forte dependência de publicidade, “o que abre portas para acordos com grupos político-econômicos locais”, advertem Sonia Virgínia Moreira, Nélia Del Bianco e Cézar Martins. Os autores ainda lembram que o Código Brasileiro de Telecomunicações prevê veiculação de no máximo 25% de publicidade no tempo total de programação da radiodifusão aberta, mas a fiscalização do Ministério das Comunicações é praticamente inexistente.
Jornalistas brasileiros percebem a transparência como valor importante, exceto quando o tema é proteção das fontes. Estudo feito com 353 profissionais também revelou algumas contradições: a categoria tende a se enxergar como transparente, mas nem sempre adota práticas cotidianas de abertura ao público. Isso se justifica pelos constrangimentos no ambiente de trabalho das redações.
Ana Paula Goulart de Andrade e Leonel Azevedo de Aguiar discutem o que mudou nas rotinas produtivas do jornalismo com o uso de robôs para o processamento da notícia.
Pesquisadores do PPGJOR/UFSC apresentam um panorama de arranjos econômicos de jornalismo alternativos à grande mídia em Santa Catarina.
Lembra do Relatório MacBride? Publicado em 1980 pela Unesco, o documento chamava a atenção para os vários desequilíbrios decorrentes da concentração midiática. Quarenta anos depois, este e-book revisita e analisa o marco. Organização de Danilo Rothberg, Caroline Luvizotto e Juliano de Carvalho.
SECOS & MOLHADOS
A Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (RENOI) fez um censo e mapeou 25 projetos que analisam a mídia. A maioria dos observatórios está na região centro-oeste, sob coordenação de mulheres.
Na estreia do podcast Jornalismo(s), uma conversa com Pedro Aguiar (UFF) sobre a economia política das agências de notícias.
Participe do Perfil Racial da Imprensa Brasileira, parceria de Jornalistas&Cia com Portal dos Jornalistas. O objetivo é conhecer o grau de diversidade das redações brasileiras.
Tem mais! O Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 recebe respostas até o final de setembro. Samuel Lima, do objETHOS, é um dos coordenadores da pesquisa. Podem participar jornalistas na mídia, fora dela e na docência.
Um veículo pode aceitar qualquer anúncio sem afetar a sua credibilidade? Quando o assunto é ética, tem coisas que são inegociáveis.
A verdade também não tem preço. Um estudo mostra que até jornalistas que questionam a objetividade valorizam a verdade.
Estamos no Setembro Amarelo, mês de prevenção do suicídio. Que tal alguns filmes para ver e discutir este tema delicado? Curadoria do dr. Jairo Bauer.
Na Tanzânia, o governo suspendeu a licença de um jornal por “violação da ética profissional”. A punição vale por um mês. Complicado, hein?
No Afeganistão, os talibãs já fecharam 90 publicações e jornalistas estão abandonando suas casas pra fugir do país. Complicado também…
No Brasil, um estudo mostra que notícias falsas cresceram no Facebook desde a queda de Dilma Rousseff, e que o ápice foi… adivinha quando?
AGENDE-SE
As diferentes noções de crítica de mídia são tema de ciclo de conferências organizado pelo grupo de pesquisa Mídia e Narrativa (PUC-Minas).
Ainda dá tempo de mandar o seu artigo para o próximo dossiê da revista Pauta Geral, que aceita temas como ética jornalística, desinformação e fact-checking, curadoria de conteúdo digital e impactos algorítmicos na produção, circulação e recepção de produtos jornalísticos. Corre! É até 12 de setembro.
Também perto de fechar a data, o dossiê “Jornalismo e conhecimento em tempos de capitalismo pandêmico e de expansão da desinformação”, editado pelo periódico Líbero, recebe contribuições até 15 de setembro!
A espanhola Ámbitos está com chamada aberta até o dia 30 deste mês para um especial sobre emergência climática, negacionismo e grupos de pressão.
Digital Journalism recebe resumos sobre censura e violência digital contra jornalistas até 15 de outubro. Artigos completos em fevereiro do próximo ano.
Mesmo esquema da Social Media + Society, com chamada sobre economia política da desinformação. Resumo em 15 de outubro, artigo completo em março.
Como a pandemia modificou nossa experiência com a mídia? Este é o tema do próximo dossiê da Mídia e Cotidiano. Deadline em 19/10.
“Ética da comunicação digital: novos modelos e instrumentos de prestação de contas” é o tema da próxima Revista Mediterránea de Comunicación. Chamada aberta até 1º de março de 2022.
As formas simbólicas da mitologia e suas relações com a comunicação digital são temas de dossiê da revista Esferas. Prazo bom: 30 de abril de 2022.
O 23º Simpósio Internacional de Jornalismo Online (ISOJ) já tem data: 1º e 2 de abril de 2022!
Esta foi mais uma edição produzida por
Dairan Paul
e
Rogério Christofoletti
. A próxima chega com a
primavera
, no dia 22.
Esta newsletter é um produto do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.