O que a ética do cuidado pode ensinar ao jornalismo?
Edição 121: projeto de perseguição + PL das fake news + agenda cheia de oportunidades
Olá, assinante!
Infelizmente, temos nos repetido, mas como deixar de denunciar a enxurrada de violências cotidianas contra o jornalismo? Não dá pra se calar!
Colecionamos agressões que já fazem do Brasil um dos países mais violentos do mundo para os jornalistas. O ataque covarde do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) é só o mais recente: ele debochou da tortura sofrida por Miriam Leitão durante a ditadura, quando estava grávida. A Abraji repudiou e a Fenaj exigiu a perda do mandato do parlamentar pelo crime de apologia à tortura. Partidos acionaram o Comitê de Ética da Câmara, pedindo providências. Mas lembramos: há um ano, o mesmo comitê livrou o político por defender a volta do AI-5. Cartas marcadas!
O episódio não é isolado. Faz parte de um projeto de perseguição ao jornalismo, usando cargos políticos e órgãos públicos, como a Polícia Militar do Distrito Federal que tentou prender o jornalista Sylvio Costa em sua própria casa, em plena festa de aniversário, quando gritava “Fora Bolsonaro!”.
Em outras ocasiões, Ministério da Justiça, Polícia Federal, Advocacia Geral da União, e seguranças pessoais do presidente da República foram usados para intimidar jornalistas. É o que se pode chamar de violência de Estado contra o direito à informação e contra o direito de exercer uma profissão. A conclusão é simples: o bolsonarismo quer acabar com o jornalismo crítico e independente.
Amanhã é dia do jornalista, e só tem um jeito de marcar a data: insistir no jornalismo.
PL DAS FAKE NEWS
Com texto pronto para ir à votação na Câmara Federal, o Projeto de Lei nº 2630, chamado de PL das Fake News, ainda arrepia muita gente. No domingo passado, o Google despejou dinheiro em alguns dos principais jornais impressos do país, tocando o terror: anúncios de página inteira diziam que a nova lei poderia “obrigar o Google a financiar fake news”. É mais um capítulo do lobby escancarado das big techs.
O relator do projeto, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) rebateu.
Eletronic Frontier Foundation e Coalizão Direitos na Rede — que reúne a sociedade civil — estão com campanha para pressionar os deputados a tirarem do PL o trecho que obriga as plataformas a pagarem por conteúdo jornalístico. Parece estranho, mas não é. As entidades entendem que a matéria é muito séria para ser colocada como um artigo em lei tão ampla, e que o assunto precisa ser mais discutido e ter regras próprias para isso. A coisa está longe de ser consenso.
Já dissemos isso em novembro, mas não custa repetir: todos precisam ficar atentos à tramitação deste projeto de lei. Afinal, vai afetar todo o mundo.
PASSA LÁ!
Sem tempo, irmão?! Não deu pra ler o que publicamos no site nos últimos tempos?
Respira. Tá na mão:
Lívia Vieira mostra que a cobertura da eleição presidencial exigirá jornalismo ético, mais do nunca. E ela aponta quatro modos de fazer isso.
Jéferson Silveira Dantas não mede as palavras e defende um caminho para combater a miséria do bolsonarismo e seu planetário de fake news.
PENSATA
“Quando eu era um jovem repórter, aprendi que a exploração do sofrimento alheio para vender mais jornais ou ganhar mais votos é imoral.”
Juan Luis Cebrián, publisher espanhol
RADAR ENTREVISTA
Três perguntas para Barbara Nickel, jornalista e autora da tese de doutorado “O cuidado como prática e como valor: uma proposta de ética jornalística feminista”:
O que é a ética do cuidado?
Como outras propostas feministas, a ética do cuidado não funciona como um conjunto de princípios abstratos ou gerais, mas como perspectiva a ser adotada em situações concretas e localizadas. O cuidado é valorizado de maneira central, como aquilo que permite nossa sobrevivência no mundo, nossa dignidade e nosso bem-estar. A partir daí, encontra-se uma visão de sujeito que é relacional e interdependente, cuja existência depende de uma ampla teia de condições. Enxergar as responsabilidades individuais e coletivas — como estão distribuídas hoje, como seria uma distribuição mais justa — é uma discussão importante para uma ética feminista do cuidado, pois contribui para ampliação de olhares sobre desigualdades e injustiças sociais, raciais, de gênero e ambientais, por exemplo.
Como ela nos ajuda a repensar a ética jornalística?
Para o jornalismo, uma das discussões interessantes que ela poderia trazer é sobre nossas próprias relações de trabalho (e relação com o trabalho). Por exemplo, se jornalistas têm jornadas exaustivas, baixos salários e cada vez menos acesso a direitos trabalhistas, é possível que o jornalismo se torne uma profissão pouco sustentável para jovens que têm responsabilidades importantes de cuidado em suas famílias e comunidades, o que acaba também limitando as perspectivas e histórias que uma redação é capaz de perceber e contar.
Tradicionalmente, a ética jornalística pressupõe um sujeito independente e autônomo. Temos, muitas vezes, dificuldade de nos percebermos como parte dessa rede interdependente que a ética do cuidado revela. O produto jornalístico também, em geral, tende a pressupor um leitor, um consumidor, que é capaz de existir e agir de maneira autônoma. Entendo que o tipo de desafio que o mundo contemporâneo nos coloca — desigualdades, desastres e crimes ambientais, pandemias, exaustão generalizada — exige uma importante e urgente revisão de quais pautas importam, quem consegue essas histórias, sob quais condições. E a ética do cuidado poderia contribuir para o debate.
Quais exemplos seguem essa proposta no jornalismo brasileiro?
A ética do cuidado reconhece que só somos capazes de agir “tão bem quanto possível”. Menciono um exemplo, citado também na tese: o podcast Praia dos Ossos, que, ao retomar a história de um crime cometido há 40 anos, provoca reflexões sobre a cobertura jornalística da época, os papéis sociais de homens e mulheres, o despertar do movimento feminista brasileiro em reação à persistente realidade da violência doméstica e os avanços do sistema de justiça — além de, em diversos momentos, revelar como foram tomadas certas decisões editoriais nos episódios. Como conteúdo, é um produto que nos oferece essa visão mais ampla.
Acredito que muito do que a jornalista e pesquisadora Fabiana Moraes apresenta em seus trabalhos e artigos também está alinhado a essa perspectiva, mesmo que não seja o seu foco e a ética do cuidado nem seja nomeada.
Acho importante dizer que pode haver profissionais fazendo essas reflexões ou mesmo redações trazendo-as para debates, e uma das limitações do meu trabalho é não conhecê-las. Quero dizer, com isso, que desconheço exemplos que tenham sido intencionalmente movidos por uma ética do cuidado, já que essa é uma perspectiva quase nada ou muito pouco discutida em nossa área. Também não considero possível seguir essa proposta integral ou perfeitamente, já que a prática do cuidado, em si, está sempre sujeita às condições imperfeitas das nossas circunstâncias diárias.
VALORES E VIRTUDES
Pautas sobre risco, comportamento e consumo são as que mais priorizam crianças como fontes, segundo esta análise de edições da revista Veja.
Em Santa Catarina, iniciativas de jornalismo independente podem representar uma inovação social, mas ainda esbarram no velho problema da sustentabilidade.
As lições morais do filme Spotlight e a exaltação do jornalismo virtuoso.
SECOS & MOLHADOS
Os números melhoraram, mas a pandemia não acabou. A Fenaj atualizou seu dossiê sobre jornalistas mortos pela Covid-19: tivemos 1 morte a cada 2 dias.
No Poynter, um artigo diz para jornalistas repensarem sua relação com erros e correções. Nossa pesquisadora, Livia Vieira, fala disso há anos. Sua dissertação de mestrado até ganhou prêmio…
Por falar em pesquisadora do objETHOS, Sylvia Moretzsohn é a entrevistada do mais recente episódio do Diálogos ObservInfo. É sobre objetividade!
A justiça paulista condenou Sikêra Jr. a pagar indenização de R$ 300 mil a Xuxa Meneghel. Não foi jornalismo nem liberdade de expressão.
No Pará, um apresentador chamou estudante negro assassinado de “criminoso” e revoltou familiares. Até quando o jornalismo justiceiro vai provocar vítimas?
No Espírito Santo, nosso parceiro de Renoi, o Observatório da Mídia fechou parceria com a Transparência Capixaba para monitorar prefeituras.
Conhece o Manchetempo? É um projeto da UFF que republica primeiras páginas de fatos históricos. Os professores Pedro Aguiar, Bárbara Emanuel e Adriana Barsotti lideram a iniciativa.
Ficou sabendo da Tornavoz? A associação foi criada por advogadas para defender jornalistas em processos judiciais no exercício da profissão. Mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ são as prioridades.
No Peru, o Colégio de Periodistas publicou nota preocupada com o assédio judicial e outras formas de criminalização dos jornalistas.
Por aqui, a campanha eleitoral já atiça a sociedade. A CNN Brasil divulgou seu posicionamento para a cobertura. Vamos ver mais meios fazendo o mesmo?
Abraji denuncia: 4 de 9 presidenciáveis bloqueiam jornalistas no Twitter.
Fenaj critica Wikipedia por chamar meios brasileiros de “fontes não confiáveis”.
“Não somos fixers; somos jornalistas”. Mais um importante debate sobre condições de trabalho dos jornalistas na Guerra da Ucrânia.
Você deve lembrar do assassinato de Möise Kabagambe em um quiosque do Rio de Janeiro no começo desse ano. Pesquisa do Aláfia Lab identificou que menos de 10% das menções ao crime nas redes sociais vincularam o caso à questão racial.
AGENDE-SE
Se você está na Itália, dê uma chegadinha em Perugia, no Festival Internacional de Jornalismo. Vai até dia 10.
Na sexta, 8, tem o Seminário online Desinformação, desigualdades de comunicação e regulação, do grupo Jornalismo, Direito e Liberdade.
Será em novembro, na Federal Fluminense, a terceira edição do congresso TeleVisões. Quer apresentar trabalho? Organize-se para submetê-lo até dia 28 desse mês.
Que tal participar do próximo congresso da ALAIC? Será em Buenos Aires, com apresentações remotas ou presenciais. Os 19 Grupos de Trabalho recebem resumos ampliados até 20 de maio.
A Transparência Brasil está com vagas abertas para estagiário de jornalista e analista de comunicação.
Em 15 de abril termina o prazo para envio de resumo simples no dossiê da Fronteiras sobre inteligência artificial. Texto completo só no final de agosto.
Um dossiê em homenagem ao professor Ciro Marcondes será editado pela revista Paulus. 30 de abril é o prazo máximo para mandar textos.
“Políticas de comunicação para um Brasil democrático” é o título da nova chamada de artigos na Eptic. O número será coordenado por Murilo César Ramos e Helena Martins. Prazo: 30 de maio.
Na revista Culturas Midiáticas, chamada aberta para o tema da desinformação. Letramento midiático, crise de credibilidade e infraestrutura das plataformas digitais são alguns dos tópicos aceitos no dossiê. Artigos até 30 de junho.
Relembrando algumas chamadas ainda de pé: dossiês sobre jornalismo e sociedade (Media & Jornalismo — 20/04), mitologias na atividade jornalística (Esferas — 30/04) e reportagem em quadrinhos (Sur Le Journalisme— 15/05); 7º Congresso de Comunicação, Jornalismo e Espaço Público (09/05).
A próxima newsletter chegará na sua caixa de emails no dia 20. Se nada mudar, ela será produzida por Dairan Paul & Rogério Christofoletti, que também respondem por esta edição
Esta é uma realização do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.