Ela está de aniversário e nunca foi tão necessária
Edição 124: uma década de LAI + dilemas de repórteres especiais + o caso Rubens Valente
Olá, assinante!
A Lei de Acesso à Informação completou dez anos de vigência nesta semana. Se você é repórter, já deve ter acionado a LAI para abastecer suas matérias. Se estuda ou pesquisa jornalismo também já ouviu falar dela. Independente de quem você é, a LAI é um instrumento da cidadania para cobrar de governos, órgãos, entidades e autoridades mais transparência pública.
Em qualquer contexto seria uma ferramenta social bem-vinda. Imagina num governo que demora a divulgar dados — como o Ministério da Saúde na pandemia — ou que cria diversas camadas de sigilo que impedem a sociedade de saber o que se passa… Levantamento recente da agência Fiquem Sabendo mostrou que o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República é o campeão dos segredos.
Para governos que não querem prestar contas dos seus atos, vale tudo. Inclusive usar a lei de proteção de dados para negar pedidos de informação via LAI. É uma forma perversa de enfraquecer o seu direito à informação, mas como dizem por aí: o Brasil tá vendo! Longa vida à LAI! Use e abuse dela.
APROVEITE
Democracias consolidadas se fortalecem com leis de acesso à informação. Os 10 anos da LAI são motivo de celebração e também uma oportunidade para se qualificar. Desde o começo do mês o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas está promovendo o ciclo de eventos on-line “10 anos da LAI: impacto, desafios e oportunidades” para ajudar a intensificar o uso da lei.
É de graça e ainda dá pra acompanhar dois debates: um sobre o embate LAI x LGPD (dia 24) e outro sobre monitoramento de políticas ambientais (dia 31). Inscreva-se aqui.
No final do mês, o Fórum deve lançar uma publicação gratuita com textos de especialistas avaliando a primeira década de funcionamento da LAI. O Fórum foi criado em 2003 justamente para “mobilizar governo e sociedade pela regulamentação do direito de acesso à informação”. É composto por 28 entidades, inclusive este observatório.
VALENTE
O assédio judicial é uma praga que corrói o jornalismo e isso não é de hoje. A ameaça de processos leva repórteres a recuar em investigações, e ações na justiça fazem com que outros simplesmente deixem de cobrir certos assuntos ou personagens porque se veem impedidos. É o que está acontecendo com Rubens Valente, soterrado por uma sentença incomum e que funciona como censura.
O caso indignou entidades de classe e levou colegas a organizarem uma vaquinha para ajudar o jornalista a pagar mais de 310 mil reais a um ministro do STF. Mais de 2400 pessoas contribuíram e a “meta da arrecadação” está quase sendo alcançada. Mas quantos Rubens Valentes não existem por aí sendo soterrados por indenizações massacrantes?
Reportagem de Nayara Felizardo mostra que denunciar juízes na imprensa pode levar jornalistas à falência ou à prisão. É desanimador, mas felizmente tem muita gente ética, comprometida com a sociedade e corajosa para insistir…
DIRETO DO NOSSO SITE
Vanessa da Rocha pergunta (e responde): quanto custa um jornalista?
Vitória Ferreira aponta uma resposta para a desinformação: colaboração.
Baixe nosso dossiê Ataques ao jornalismo e ao seu direito à informação
PENSATA
“Ser jornalista é ruim, mas trabalhar é pior"
Ditado italiano
RADAR ENTREVISTA
Três perguntas para Magali Moser, jornalista e autora da tese de doutorado “O método da reportagem: um estudo a partir de depoimentos de repórteres especiais”:
O que diferencia repórteres especiais de outros jornalistas?
Repórteres especiais se diferenciam pela experiência acumulada, autonomia na proposição e desenvolvimento de pautas e, em geral, pelo tempo de apuração diferenciado, mais livres da pressão do imediatismo. Isso faz com que tenham a possibilidade de imprimir um viés mais autoral nos seus trabalhos. Contestam e transgridem certas normas profissionais, mas também promovem a afirmação do campo profissional, notabilizando-se como “cânones”. Essa expressão é usada nas próprias redações, para identificar jornalistas que, de maneira geral, dedicam-se exclusivamente à reportagem, especialmente aquela que exige mais fôlego.
Você identificou um método comum de produção da reportagem entre os repórteres especiais que entrevistou?
Sim, podemos afirmar que há um método institucionalizado próprio de abordar a realidade social nas práticas profissionais de repórteres especiais, embora o grupo muitas vezes não o reconheça ou o identifique desta forma.
Na pesquisa, entrevistamos 12 repórteres especiais amplamente reconhecidos no Brasil, com perfis diversos e passagem por diferentes plataformas midiáticas. Tivemos o cuidado de mesclar experiências do mainstream (TV Globo, por exemplo) e iniciativas ligadas ao jornalismo independente (como a Agência Pública), reunindo repórteres especiais com atuação em grandes centros (São Paulo e Rio de Janeiro) e municípios menores (Juiz de Fora e Florianópolis), na busca por contemplar a diversidade de práticas possíveis.
O resultado das análises mostrou que há um método profissional comum marcado por procedimentos sistemáticos e etapas, processos e condutas fundamentais, a partir das três competências jornalísticas – os saberes de reconhecimento, de procedimento e de narração. Esse método orienta e conduz mesmo que isso não ocorra de modo consciente. Ideias como “processo anárquico” e “caótico”, “método muito pessoal” ou até a “recusa de um método” apareceram nas respostas.
Diante da tendência de internalização das competências jornalísticas, a pesquisa mostrou a necessidade de tornar visível a explicitação do método jornalístico. O que no atual contexto de ecossistemas de desinformação e relativização da verdade factual se torna ainda mais necessário, inclusive para diferenciar o que é jornalismo daquilo que finge ser mas não é. Descartamos de antemão um caminho único ou um receituário, um manual restrito a um conjunto de técnicas, mas queremos pensar essa questão respeitando, claro, as especificidades do jornalismo. Negar a existência de um método enfraquece o jornalismo como mediação crítica, sustentada em princípios básicos.
A experiência desses profissionais revelou padrões de valores e conduta ética? Quais são os dilemas que enfrentam?
Valores ligados à conduta ética atravessam todo o percurso e processo de produção da reportagem. Conflitos, tensões e dilemas acompanham as rotinas profissionais independentemente do tempo de experiência ou status profissional. Apesar de a ética jornalística sugerir um discurso prescritivo e normativo, caracterizado pelo dever ser, ela não se esgota numa fórmula fechada e replicável, não se reduz a uma técnica. É um movimento que requer disposição para alcançar o Outro, exige ponderação permanente para acompanhar as complexidades impostas à atividade. Não há um manual.
Os relatos dos repórteres especiais demonstram que o tempo de exercício profissional, a bagagem acumulada ou os prêmios conquistados não significam ausência de dilemas éticos. Os conflitos se manifestam desde questões aparentemente simples, como a maneira de abordar uma pessoa numa entrevista, ou a forma de se dirigir a uma fonte, até casos mais delicados, como omissão da identidade profissional e infiltração.
Talvez, uma característica comum a todos os jornalistas consultados seja a busca por uma postura que se abra profundamente ao questionamento, à escuta e à observação. Distanciar-se de si, num movimento em direção à alteridade, é a melhor maneira de se fazer isso, para alguns dos entrevistados. Há uma pré-disposição à autocrítica e à reflexão permanente na tentativa de alcançar o Outro e se aproximar da verdade factual e informação precisa. A reportagem, afinal, se faz de uma infinidade de escolhas, podendo incluir diferentes técnicas, dependendo do caso.
QUEM PAGA?
Nicolas Barbosa e Jacqueline Dourado descrevem a estrutura do mercado jornalístico do Piauí.
Nara Scabin examina as perspectivas identitárias sobre gênero no jornalismo da Folha de S.Paulo.
Tim Kormelink entrevista 68 pessoas para descobrir por que elas não querem pagar para ler notícias.
SECOS & MOLHADOS
Semana passada fez 35 anos de uma reportagem histórica para o jornalismo brasileiro: a fraude em licitações da ferrovia Norte-Sul. Seu autor, o gigante Janio de Freitas, foi entrevistado pelo Poder360 e lembrou da investigação.
Ataques ao jornalismo brasileiro cresceram 26,9% este ano. Nos últimos dias, atiraram um tomate numa repórter de TV e tentaram atropelar outras duas profissionais. As autoridades não movem um dedo. Estão esperando o quê?!
Aliás, zero esperança de punição ao deputado Eduardo Bolsonaro no Conselho de Ética da Câmara. Lembra que ele debochou da tortura a Miriam Leitão?
A indústria jornalística nacional é pouco transparente, mas ela não é a única. Nos EUA, também pedem que os meios sejam mais abertos…
Pesquisa mostra que desinformação e violência nas redes afetam comportamento de jornalistas no Brasil.
O vazamento recente de documentos da Suprema Corte dos EUA sobre o aborto reacendeu debates éticos também no jornalismo.
Estamos mal na foto: 109 países têm mais liberdade de imprensa que o Brasil.
Já que falamos nela, que tal 5 perguntas sinceronas que toda redação deveria se fazer sobre liberdade de imprensa?
Um guia para jornalistas sobre como cobrir eventos extremos e mudanças climáticas (em português).
AGENDE-SE
Um curso gratuito e online sobre jornalismo e saúde mental. Oferecido pelo ITSRio e com inscrições até 30 de maio. Corra!
Faltam poucos dias para encerrar o prazo de envio de propostas de comunicação científica para o Congresso da Alaic: 20/05.
O simpósio internacional “Acabar com a impunidade de ataques a jornalistas” será realizado em novembro, em modalidade virtual, com organização da Universidade Brigham Young. Leia a chamada em português e submeta a sua proposta de apresentação até 15/09.
Um prazo a mais para o dossiê comunicação, mídia e interseccionalidade, da revista Mídia e Cotidiano: até 23/05.
Estudante de graduação, que tal publicar sua pesquisa de iniciação científica? Oportunidade da Revista Brasileira Estudos da Mídia, que recebe artigos de temática livre. Envios até 30/06.
Chamadas de dossiês que você ainda pode aproveitar: políticas de comunicação (Eptic — 30/05) e desinformação (Culturas Midiáticas — 30/06).
Esta foi mais uma cartinha escrita por Dairan Paul & Rogério Christofoletti. A próxima vem em junho. Sim! O ano está voando!
Esta é uma realização do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.