Guerra na Ucrânia: jornalismo brasileiro escolheu um lado
Edição 119: dilemas éticos de quem está no front + mudanças com a pandemia + homens brancos nas redações
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Se antes já se dizia que a verdade é a primeira vítima de uma guerra, imagine agora, com poderosos ecossistemas de desinformação, recrutamento internacional de hackers e sofisticadas estratégias cibernéticas.
A invasão russa à Ucrânia inundou o noticiário com temores de um massacre de civis, uma crise migratória inédita e uma iminente guerra nuclear. Entender o que está acontecendo é um desafio para todos. Como escreveu nossa pesquisadora Tânia Giusti, o jornalismo é essencial para dissipar a névoa da guerra. Nesta edição, driblamos os experts instantâneos em geopolítica e recorremos a dois especialistas de verdade para avaliar a cobertura jornalística do conflito. Confira!
RADAR ENTREVISTA
Eles não foram enviados a Kiev, mas sabem tudo sobre o conflito que pode redesenhar a Europa e mudar a correlação de forças mundiais. Pedro Aguiar é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), especializado em jornalismo internacional, com estudos sobre o Leste Europeu, ex-Iugoslávia e ex-URSS. Fabricio Vitorino é jornalista, gerente de conteúdo digital da NSC e mestre em cultura russa pela USP.
Coberturas de guerra são sempre muito difíceis porque necessitam de preparo técnico e logística especial. Como está a cobertura brasileira desta guerra?
Pedro Aguiar: Há duas coberturas paralelas: a dos repórteres que foram para dentro da Ucrânia ou para junto de suas fronteiras (Polônia, Hungria) e a da retaguarda, feita nas redações, com apuração remota. É normal. O problema é que parece que as apurações de um lado e outro não batem. Os enviados especiais observam o nível micro, histórias humanas, fazem pautas de clima, de testemunho e do singular. Já redatores e editores, alimentados por agências de notícias e assessorias de governos, têm acesso ao macro e conseguem elaborar pautas de análise e grandes declarações. O problema é que a linha editorial dos aquários está pesando a mão demais nesse último grupo. Um certo viés é definido a priori e a apuração local fica subordinada a ele. Para piorar, não há repórteres brasileiros em Moscou, dando o lado russo do conflito.
Nesta guerra, a imprensa brasileira se mobilizou de maneira ágil. Quando a Rússia cruzou a fronteira, já tínhamos na Ucrânia o Yan Boechat (Band e O Globo), em Donetsk, o Leandro Stoliar (Record), em Zaporíjia, mais o Sérgio Utsch (SBT), o Mathias Brotero (CNN Brasil) e o Eduardo Gayer (Estadão), os três em Kiev. A Folha chegou atrasada, com o Igor Gielow deslocado de Moscou, e a TV Globo preferiu nem entrar, deslocando Rodrigo Carvalho de Londres para o lado de fora, na Polônia. O documentarista Gabriel Chaim, que não é jornalista, ofereceu serviços para a TV Globo na capital ucraniana, e continua lá. Em poucos dias, esses repórteres deslocaram-se para oeste ou saíram da Ucrânia. Esse corpo de reportagem já é melhor do que se teve no Iraque em 2003, quando a maior parte da cobertura foi feita de fora, no Kuwait e no Catar (exceto o Sérgio Dávila, da Folha, que esteve em Bagdá), ou na Síria em 2011, quando passaram anos até algum jornalista brasileiro entrar no país.
Fabricio Vitorino: De fato, cobrir guerras, conflitos, ou mesmo áreas conflagradas — e aí eu incluo favelas no Brasil, ou mesmo conflitos urbanos — é um dilema para o jornalismo. Até que ponto é válida a exposição de profissionais? Quando é a hora de se retirar? E quais os planos de contingência, caso algo dê errado?
São poucos os profissionais do Brasil com treinamento para esse tipo de cobertura. Por isso, a imprensa brasileira vem adotando nos últimos anos uma postura de cobertura lateral de conflitos — com frilas, fixers ou mesmo usando correspondentes em áreas próximas. Muitas vezes, o fato destes profissionais não serem jornalistas — ou estarem diretamente envolvidos com um dos lados — compromete a qualidade da informação.
Nesta guerra, demoramos a enviar profissionais e ainda estamos aquém de nossas possibilidades. Estamos com uma visão limitada e extremamente dependente de agências ou de veículos europeus ou dos EUA. O que, com absoluta certeza, pode comprometer nossa cobertura.
Poderíamos ter gente nos países bálticos. Na própria Ucrânia. Na Polônia, Eslováquia, Romênia, Moldávia... São coberturas caras, eu sei. Mas é o tipo de esforço imperativo para uma melhor compreensão das circunstâncias do conflito.
Existem dilemas éticos específicos para jornalistas em tempos de guerra?
Pedro Aguiar: O maior dilema é encontrar um ponto de equilíbrio entre os horrores humanos que se testemunha — as histórias de morte, mutilações, famílias desencontradas, fome, desespero — e a noção mais ampla de que o conflito transcende os dramas individuais. O repórter de guerra precisa ter o olho no front e o cérebro na sala de crise: relatar o que observa, sem perder de vista as decisões estratégicas. Guerra é ruim para (quase) todo mundo, e se um país chega a esse ponto é porque, provavelmente, esgotou as alternativas disponíveis.
Fabricio Vitorino: A vida do profissional vem em primeiro lugar. Jornalista não é soldado, não é juiz. Não deve se arriscar, ir ao limite do perigo, assim como também não deve julgar ou tomar partido. Qualquer das atitudes coloca em risco a sua vida.
Não menos importante é preservar a vida e respeitar as vítimas. Refugiados não devem ser expostos — suas famílias podem ainda correr risco de vida. Vítimas não devem ter sua imagem explorada - embora possam agir como elemento convencedor, emocionando audiências, suas histórias devem ser cuidadosamente protegidas. E militares devem ser tratado com cautela — importante mostrar atos que desrespeitem as convenções de guerra, para que, mais tarde, punições possam ser tomadas. Mas jamais expor atores da guerra, em tom de julgamento. A hierarquia militar é algo extremamente complexo. Em tempos de guerra, seu não-cumprimento — ou mesmo a deserção — podem ser punidos com execução.
PENSATA
“O que eu faço? Recolho sentimentos, pensamentos, palavras cotidianas. Reúno a vida do meu tempo. O que me interessa é a história da alma. A vida cotidiana da alma. Aquilo que a grande história geralmente deixa de lado, que trata com desdém. Eu me ocupo com a história omitida.”
Svetlana Aleksiévitch, jornalista nascida na Ucrânia e vencedora do Nobel de Literatura em 2015
+ RADAR ENTREVISTA
É possível oferecer uma cobertura não-polarizada? Como fazer isso?
Pedro Aguiar: É possível, e ela já foi feita na história do nosso jornalismo. Em 2003, a grande imprensa brasileira foi crítica aos argumentos dos EUA para invadir o Iraque. A falácia das “armas de destruição em massa” era exposta todos os dias nos jornais e telejornais. Havia correspondentes em Washington, sim, mas os discursos da Casa Branca eram contrapostos pelos do Palácio Eliseu, coberto pelos correspondentes em Paris (França e Alemanha foram contra aquela guerra). Despachos de agências eram editados criticamente, complementados com fontes de posturas opostas. O jornalismo brasileiro sabe fazer isso. Se não o faz agora, é uma escolha editorial.
Fabricio Vitorino: Objetividade e subjetividade são conceitos que, muitas vezes, se confundem na cabeça da audiência. Novamente, jornalista não é juiz, mas está numa condição despida de sua humanidade. De variadas formas, acaba se envolvendo e participando do conflito, trazendo para a cobertura suas experiências. Assim, como estamos num país altamente influenciado pela mentalidade ocidental, é importante se policiar sempre: não estamos repetindo o discurso americano? Não estamos repetindo a russofobia, por exemplo? Aliás, e o outro lado? Como estamos tratando, jornalisticamente, a Rússia, no caso?
O que ajuda, sem dúvida, é o conhecimento prévio. É entender a história, a cultura do país, o que o levou a agir de tal forma, com tamanha hostilidade. Antes de tentar convencer, precisamos entender. E aí, sim, iremos conseguir explicar e reportar de forma mais clara. Nesse sentido, creio, estamos pecando. Não conhecemos Rússia, Ucrânia, Leste Europeu. Repetimos os clichês americanos do “pós-sovietismo”, Guerra Fria, da Rússia como um urso. Por desconhecimento, repetimos os clichês.
O que você gostaria de ver nesta cobertura e que, infelizmente, tem faltado?
Pedro Aguiar: Gostaria de ver jornalismo desapaixonado, sem torcida por um lado, até porque a guerra não envolve o Brasil e será péssima para o país em qualquer desfecho. Isso não significa deixar de pautar as matérias de interesse humano, mostrar os dramas pessoais que toda guerra provoca, mas cobri-la em todos os lados, com todos os fatores implicados, sem eleger um certo e um errado de antemão. O viés que a grande mídia brasileira adotou segue os interesses de Washington e Bruxelas: o discurso de que a Rússia, ao invadir um país vizinho de forma não provocada, torna-se o mal absoluto, do qual qualquer ponderação é “passar pano” para o Putin. Outros países estão demitindo e expulsando cidadãos russos, cancelando convênios e chegando ao ridículo de jogar vodca fora. Parece que anos de normalização do “cancelamento” transpuseram essa atitude adolescente para as relações internacionais. A imprensa precisa ser mais madura do que isso.
Fabricio Vitorino: Gostaria, sem dúvida, de ver mais jornalistas brasileiros em campo. Temos uma miríade de possibilidades para nossos profissionais oferecerem uma grande cobertura. E temos esses grandes profissionais. Apesar de entender que não seja possível — reportar na Rússia pode ser tão perigoso quanto na Ucrânia — gostaria muito de ver profissionais nossos em solo russo, acompanhando os impactos das sanções, e como a vida cotidiana vai se modificando.
QUEM ESCREVE NOS JORNAIS?
A pandemia modificou a relação entre fontes e produtores de TV, e algumas mudanças vieram pra ficar, afirmam as autoras Fabiana Siqueira e Gilmara Dias.
Homens e brancos: este é o perfil predominante de quem escreve nos três principais jornais do país. Pesquisa do GEMAA (UERJ) identificou desigualdades de raça e gênero entre quem assina matérias ou colunas no Estadão, Folha e O Globo.
Análise qualitativa revela que a cobertura de veículos reproduz a invisibilidade de pessoas com deficiência e tende a reforçar estereótipos. Cilene Victor e Renata Juliotti explicam como o jornalismo pode promover uma abordagem mais inclusiva.
Afinal, códigos de ética jornalística são relevantes para as redações? Baseado em documentos de 18 países, autores deste capítulo de livro refletem se as normas conseguem lidar com os desafios recentes do ambiente digital.
Jornalistas mulheres cis e trans representam 91,3% dos 119 casos de violência de gênero mapeados pela Abraji em 2021.
Pra baixar: Jornalismo local a serviço dos públicos traz resultados de um projeto que investigou formas de superar a crise do jornalismo, reunindo pesquisadores da UFSC, Ielusc e UEPG. Três deles são do objETHOS!
SECOS & MOLHADOS
Tem outra guerra em curso. É contra o jornalismo brasileiro, e tem repórteres sendo expulsos de manifestação, profissional sendo impedida de trabalhar, jornalista sofrendo atentado e político acusado de sequestrar jornalista.
Aliás, falhas estruturais dificultam a proteção desses profissionais em vários países da América Latina, inclusive o Brasil.
O jornalismo com humanismo é a melhor resposta ao chorume nosso de cada dia: leia, recorte e guarde este texto memorável de Jamil Chade.
A inovação no jornalismo pela visão de produto. Um texto de nossa pesquisadora Luiza Costa para o objETHOS.
Como preparar as crianças para não acreditar em qualquer mentira…
Ética jornalística em tempos de guerra, um podcast.
Brasil-il-il-il! Zelensky como herói na capa da Isto É e cenas de videogames sendo mostradas na TV como invasão real.
Na edição passada, falamos do Estadão que dedica religiosamente editoriais a malhar Lula. Folha e O Globo não fazem isso sempre. Mas também quase ignoram o fim do último processo penal contra o petista…
Em novembro passado, alertamos: não perca este PL de vista! Pois é, o PL das Fake News voltou a causar ultimamente. Preocupadinho, Facebook resolveu fazer lobby nos jornais, O Globo soltou editorial e o relator do projeto, Orlando Silva, rebateu críticas das plataformas. A novela está longe de terminar.
AGENDE-SE
Hoje é o segundo dia de discussões da Abraji sobre violência de gênero contra jornalistas.
Daqui a uma semana acontece o Festival 3i, evento gratuito que debate jornalismo independente e inovador. Confira a programação.
Já se inscreveu no Simpósio Internacional de Jornalismo Online? Ele é sediado na Universidade do Texas, mas você pode acompanhar tudo remotamente. Inicia em 01/04.
Um prazo a mais para três congressos: na Compós, deadline vai até 14/03; já para o Enejor, 20/03 é a data limite; no dia seguinte, 21/03, finalizam as submissões para o 5º Simpósio Nacional do Rádio.
Também rolou prorrogação para envio de artigos em dois periódicos. Na Reciis, o dossiê sobre desinformação em ciência e saúde recebe textos até 15/03. A edição sobre Nilson Lage na Estudos em Jornalismo e Mídia vai até 20/03.
Chamada da mexicana Sintaxis sobre exercício profissional da comunicação, incluindo os seus aspectos deontológicos. Recebem textos até dia 25 deste mês.
Comunicação na era da inteligência artificial é o tema do próximo dossiê da Fronteiras. Envio de resumos até 15/04 e artigos completos apenas em agosto.
Se você pesquisa a formação de novas mitologias no contexto digital e na atividade jornalística, veja esta chamada da revista Esferas. Prazo: 30/04.
Diretamente de nossa última edição, algumas chamadas ainda de pé: 7º Congresso de Comunicação, Jornalismo e Espaço Público (23/03); International Congress on Disinformation and Fact-Checking (27/03); 7º Congresso Internacional Comunicación y Pensamiento (28/03); dossiês sobre jornalismo e sociedade (Media & Jornalismo — 31/03) e reportagem em quadrinhos (Sur Le Journalisme — 15/05).
Esta foi mais uma edição com curadoria de Dairan Paul & Rogério Christofoletti. A próxima newsletter chega à sua caixa postal em 23 de março.
Esta é uma realização do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.