Jornalistas podem participar de marchas e protestos?
Edição 108: derrapadas éticas nos EUA + o inferno dos jornalistas no Brasil + Geração Covid
Olá, assinante!
Já pensou se a TV Brasil mudasse seus padrões éticos e isso provocasse discussões palpitantes entre especialistas e sociedade? Seria uma oportunidade para falar sobre os valores que orientam as coberturas e sobre as condutas dos jornalistas. É mais ou menos isso que está acontecendo nos Estados Unidos com a NPR, a maior emissora pública de rádio do país.
No começo de julho, a NPR atualizou seus padrões jornalísticos. Entre as mudanças está a possibilidade de jornalistas participarem de manifestações que defendem "a liberdade e a dignidade dos seres humanos”. Com isso, a emissora desceu do muro e deixou de proibir, por exemplo, que seus profissionais estejam em marchas pelo orgulho LGBTQIA+ ou por igualdade racial quando não estão cobrindo esses eventos.
Não chega a ser incentivo para que os jornalistas se posicionem, mas a mudança descongela uma postura de pretensa isenção que hoje é muito mais questionada que antes. O novo manual da NPR possibilita a ampliação de espaços e ocasiões de participação política para jornalistas, e revive uma questão importante: onde termina o jornalista e onde começa o cidadão?
DIVERSIDADE DE VERDADE
A mudança na NPR vem num momento crucial. Em Pittsburgh, os editores de um jornal proibiram uma repórter negra de cobrir as manifestações de George Floyd depois de ela ter tuitado conteúdos irônicos sobre danos sofridos por pessoas brancas. A Associated Press, por sua vez, demitiu recentemente um repórter por violar suas políticas de mídia social. (Sobre a rara liberdade dos jornalistas nas redes sociais, leia a dissertação de nossa pesquisadora Janara Nicoletti, que em 2012 já tratava disso).
Kelly McBride, especialista em ética e editora do público na NPR, ressalta outra alteração na política ética da emissora: a diversidade passa a ser “um princípio orientador fundamental, com uma obrigação específica de incluir vozes que são rotineiramente deixadas de fora das notícias”. McBride reconhece que manuais como esse não respondem a todas as perguntas, mas “essas diretrizes afirmam que, neste momento caótico em que vivemos, ser jornalista e defender a dignidade humana não são mutuamente excludentes”.
NARIZ TORCIDO
Mas nem todo o mundo aplaudiu os novos parâmetros de cobertura da emissora pública estadunidense. Joshua Benton, diretor do Nieman Journalism Lab, fez piada e questionou se “dignidade” e “liberdade” não são termos amplos demais para defender qualquer posicionamento, como os contrários à ciência.
Na Fox News, Cortney O’Brien considera que as mudanças foram inoportunas, justamente quando se espera menos politização do noticiário.
Bill Cotterell, do Tallahassee Democrat, também rangeu os dentes. “Já é ruim o suficiente que repórteres de Washington apareçam frequentemente na CNN, MSNBC ou Fox e comentem sobre questões nacionais que estão cobrindo no Congresso, nos tribunais ou na Casa Branca. Houve um tempo em que redes inteiras não delimitavam um nicho de mercado, à esquerda ou à direita. Você pode ter suspeitado como Walter Cronkite ou John Chancellor se sentiam sobre Nixon, Vietnã ou o movimento pelos direitos civis, mas eles não carregavam cartazes de piquete ou entoavam slogans em uma multidão”.
Para o jornalista aposentado, “participar de protestos públicos não é uma boa maneira de jornalistas tranquilizarem o público” de que estão fazendo bem o seu trabalho.
Você também acha que a NPR está sendo moderninha demais? Diz pra gente!
REDUÇÃO DE DANOS
O jornalismo pode causar estragos irreversíveis. Com isso em vista, a Associated Press mudou sua política de cobertura de pequenos crimes. Por isso, a agência não vai mais identificar pessoas presas por ocorrências menores e que provavelmente não terão suítes ou acompanhamento de cobertura. A ideia é “causar menos danos e dar às pessoas uma segunda chance”.
Consegue imaginar isso acontecendo por aqui onde programas de TV ainda celebram quando há “CPFs cancelados"?
DANOS COLATERAIS
Nos Estados Unidos, o governador de Nova York Andrew Cuomo renunciou ontem sob acusações de assédio sexual. O que fez seu irmão jornalista semanas antes? Ajudou a redigir a resposta midiática do político. Chris Cuomo é um dos principais âncoras da CNN, e sua postura foi muito criticada.
“Ele desperdiçou sua independência jornalística ao se envolver para salvar a carreira política do irmão”, escreveu no USA Today a professora de jornalismo Kathleen Bartzen Culver, da Universidade de Wisconsin. “Ele falhou nessa responsabilidade ao se envolver na estratégia política de seu irmão. Ao fazer isso, lançou uma sombra sobre o trabalho de outros jornalistas, já que as pessoas — com bastante justiça — poderiam ver esse fato como uma evidência de que o jornalismo convencional está muito próximo e muito confortável para os ricos e poderosos”.
Após a renúncia de Andrew, tem gente pedindo consequências para Chris também…
SIRVA-SE!
Uma das tarefas da equipe objETHOS é alimentar o nosso site com conteúdos que incentivem os debates sobre a profissão. Não faltam assuntos, e o resultado é um cardápio sortido, como se pode ver nas últimas duas semanas. Ricardo José Torres voltou a abordar a violência contra jornalistas. Rogério Christofoletti resgatou um achado da CPI da Covid, que retomou seus trabalhos. E Andressa Kikuti se atreveu a responder qual o efeito da presença das mulheres no jornalismo.
Bem variado, né? Então, entre, fique à vontade e consuma nossos conteúdos à vontade.
GERAÇÃO COVID
Mais um bloquinho com dicas de mídias independentes pra você. Nesta edição: podcast, meio ambiente e jornalismo local.
Eventos climáticos extremos serão cada vez mais comuns se nada for feito, alerta o relatório do IPCC divulgado recentemente. ((o))eco explicou os principais pontos da publicação.
Em Barueri, Jornal Dois contou histórias de jovens desempregados em meio à pandemia. A alta taxa que não consegue inserção no mercado de trabalho formou a chamada “Geração Covid”.
Sabe quantos dos 302 atletas da delegação brasileira em Tóquio nasceram na região Norte? Apenas três. Diretamente do Amazonas, Bruno Tadeu revelou quem faz parte desse 1% no podcast Afluente.
RADAR
Um ano e 500 mil mortes depois, jornalistas brasileiros se sentem adoecidos, sobrecarregados e temem perder o emprego em plena pandemia. Em abril, o Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT/USP), liderado por Roseli Figaro, coletou dados de 994 profissionais. Virou um importante relatório, e a gente destaca seis pontos:
Ritmo frenético. Embora parte dos respondentes enxergue vantagens no home office (não precisar enfrentar o trânsito, por exemplo), a maioria sofre uma intensificação da jornada de trabalho. Dificuldades para se concentrar, desânimo nas equipes e excesso de responsabilidades estão entre as consequências.
Desamparo normativo. Jornalistas sentiram falta de manuais e orientações mais claras dos empregadores sobre como trabalhar de forma remota. Ausência de suporte técnico também atingiu uma parcela dos profissionais
Constrangimentos. Quem voltou às redações precisou lidar com colegas negacionistas. Participantes relatam mal estar no ambiente de trabalho por chefes que não cumpriam medidas de segurança, como o uso de máscaras.
Dados pessoais. Para a maioria, o uso constante do Whatsapp facilitou a rotina. Mas 40% não se sentem seguros quanto à privacidade e segurança dos dados na troca de mensagens.
Saúde. 68% adoeceram durante a crise sanitária e 20% tiveram Covid. Ansiedade, esgotamento mental, sono desregulado, depressão e irritação foram os sintomas mais mencionados.
Temor pelo futuro. Perder familiares ou contrair o vírus não são os únicos medos dos comunicadores e jornalistas. Também citam a possibilidade de desemprego, a falta de vacinas e a condução da crise pelo governo.
O relatório do CPCT atualiza a primeira fase da pesquisa lançada no ano passado, quando a pandemia ainda estava no começo. Comentamos na edição #84, lembra?
GUIA SOBRE TRAUMA
Karoline Fernandes e Nadi Presser analisaram de que forma o programa Alerta Nacional, de Sikêra Jr., usa estratégias de desinformação que se alinham ao bolsonarismo.
A sociedade brasileira está pronta para um novo debate sobre os anos de ditadura? O trabalho de memória da mídia ao adentrar o tema deve ser tudo, menos pacífico, argumentam Ana Paula Goulart Ribeiro e Rachel Bertol.
Como escrever sobre situações traumáticas sem “retraumatizar” os envolvidos na história? Comece pelo guia de linguagem e estilo do Dart Center (em inglês).
Já acessou a nova edição do Journal of Media Ethics? Tem artigo de acesso livre sobre conteúdo online que não é identificado como propaganda.
No e-book Minorias midiatizadas: gêneros, etnias e territórios, capítulos sobre representações e invisibilidades no campo jornalístico.
Três décadas de projetos de extensão no curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa estão em livro disponível na íntegra.
Mas uma publicação gratuita: Gatekeeping no século XXI — o controle sobre a informação em tempos redes sociais é fruto da pesquisa de doutorado de Rafael Kondlatsch.
SECOS & MOLHADOS
Saudade de maratonar nas madrugadas? Para o Poder360, a cobertura das Olimpíadas de Tóquio poupou no jornalismo e exagerou no patriotismo.
Por falar em derrapadas da imprensa, estudos mostram que não há pluralidade nos grandes jornais quando o assunto são as reformas. João Filho para o TIB.
Vai vacinar, sim, senhor! A CNN dos Estados Unidos demitiu três empregados que decidiram não espetar os bracinhos.
Jornalismo antirracista: rolou live da Associação de Jornalismo Digital (Ajor) com Bruno de Castro (Ceará Criolo), Nataly Simões (Alma Preta) e mediação de Semayat Oliveira (Nós, Mulheres da Periferia).
Por que as pessoas são tão horríveis e mesquinhas nas brigas das redes sociais? Roxane Gay responde no New York Times.
E já que estamos falando em atrito online, uma pesquisa aponta que hábitos pessoais e normas internas de grupos ditam debate político no WhatsApp.
Brasil ainda é o país com maior número de jornalistas mortos por Covid-19. São 278 vítimas desde o início da pandemia, segundo o recém atualizado levantamento da Fenaj.
Quais métodos de checagem estão fazendo diferença? O que precisa ser revisto? Mais live, desta vez da Rede Nacional de Combate à Desinformação, nossa parceira. Participaram Magali Cunha (Coletivo Bereia), Marcio Granez (Nujoc Checagem) e Jacqueline Sordi (Facebook.eco). Mediação de Marta Alencar (Coar Notícias).
Cajueira mapeou sete organizações de jornalismo independente em Alagoas pra você ficar de olho.
Imparcialidade, este fantasma, esta miragem! Um estudo do Reuters Institute com quatro países, inclusive o Brasil.
Aula aberta com a pesquisadora Fabiana Moraes sobre jornalismo, reportagem e subjetividade, em evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
AGENDE-SE
Amanhã tem conversa aberta com Rosental Alves, diretor-fundador do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, no canal do grupo de pesquisa GJOL (UFBA). Tema: jornalismo digital no contexto de plataformização.
Depois de amanhã, dia 13, tem o primeiro episódio do SBPJor em Redes 2021 com o tema “A organização do trabalho da(o) jornalista – Impactos da pandemia”.
Dia 21 de agosto tem o Seminário Fenaj “Violência contra jornalistas: denunciar para combater e se proteger para evitar”.
Por falar em Fenaj, a entidade planeja para setembro o Congresso Brasileiro dos Jornalistas. Acontecerá a distância nos dias 17, 18, 24, 25 e 26, e os sindicatos estão sendo provocados a discutir teses e propostas em suas localidades.
Na revista Social Media + Society, um número sobre economia política da desinformação. Resumos até 15/10, artigo completo em março de 2022.
Como a pandemia modificou nossa experiência com a mídia? Tema do próximo dossiê da Mídia e Cotidiano. Confira a chamada com deadline em 19/10.
Realidade virtual será o centro das atenções na futura edição da Brazilian Journalism Research, lá em 2023. Data de envio até 30/09 de 2022. Antes disso lembramos de outra chamada aberta: jornalismo empreendedor, até 30/11.
Falta pouquíssimo para o encerramento dos prazos de submissão nos congressos da Intercom e SBPJor: até 12/08 e 15/08.
Tem ainda chamada para capítulo de livro sobre Caco Barcellos (22/10), temas livres nas revistas Âncora (20/08) e Estudos em Jornalismo e Mídia (sem prazo), dossiê sobre jornalismo como forma de conhecimento (15/09), futebol e jornalismo (30/11), democracia e radiojornalismo (31/01/22).
Good news:
a próxima newsletter chega em 25 de agosto.
Bad news:
Dairan Paul
e
Rogério Christofoletti
vão produzi-la.
Esta newsletter é um produto do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.