Quem pode impor limites ao jornalismo que destrói reputações?
Edição 127: ética e influenciadores digitais + perfil do jornalista brasileiro + cursos e eventos acadêmicos
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É difícil encontrar o adjetivo mais adequado para a exploração jornalística da tragédia pessoal da atriz Klara Castanho pelo colunista Leo Dias e o Metrópoles. Desde que veio à tona no sábado, 25, o caso dominou o debate público, levando à despublicação do texto, a pedidos de desculpas e muitas críticas.
O adjetivo mais brando para a conduta é “antiética”, e o próprio Metrópoles reconheceu que fez “mau jornalismo”, assumindo parte da responsabilidade. O colunista tentou justificar o injustificável.
Mas nenhuma retratação vai apagar que o Código de Ética do Jornalista Brasileiro foi violado repetidamente. O código diz que é dever do jornalista “não colocar em risco a integridade das fontes”, “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” e “combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza” (art.6º, incisos VI, VIII e XIV). O código diz também que não se pode “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime” (art. 7º, inciso V) e que jornalistas devem “tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar” (art. 13, inciso III).
O Conselho Regional de Enfermagem e o Hospital e Maternidade Brasil apuram as condutas de profissionais da saúde que teriam vazado informações pessoais da atriz. Jornalistas não têm um conselho profissional que possa fazer o mesmo. Mas têm comissões de ética que podem ser acionadas. Diretoria Executiva e a Comissão de Mulheres da Fenaj prometem fazê-lo. Este é um caminho para deter o jornalismo irresponsável que tritura vidas e imagens públicas. Outro pode ser os tribunais.
A enfermeira envolvida no vazamento pode ter seu registro cassado, caso seja confirmada a infração ética. No jornalismo, ainda não podemos afastar jornalistas antiéticos. Talvez o episódio provoque a categoria para que sejam criadas condições de punição mais efetiva para quem desonra a profissão. Enquanto isso, Leo Dias continua…
+ Indignação
Colunas de fofoca e a irresponsabilidade com a vida privada: Leo Dias e Klara Castanho — Natália Huf, no objETHOS
Solidariedade à Klara Castanho — nota oficial da Fenaj
Comissão de Ética dos Meios de Comunicação condena exploração de vítimas de violência sexual por jornalistas - nota oficial da ABI
Deputadas apoiam Klara Castanho e cobram responsabilização de Leo Dias e Fontenelle — Congresso em Foco
Klara Castanho, o jornalismo de celebridades te deve desculpas — Luciana Bugni no UOL
PENSATA
“O jornalista é responsável por toda a informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros, caso em que a responsabilidade pela alteração será de seu autor."
Código de Ética do Jornalista Brasileiro (art. 8º)
RADAR ENTREVISTA 1
Nos próximos blocos, você confere a entrevista que fizemos com Issaaf Karhawi, jornalista, doutora em Comunicação (USP) e autora do livro “De blogueira a influenciadora: etapas de profissionalização da blogosfera de moda brasileira”:
O espaço de prestígio que alguns influenciadores ocupam produzindo conteúdo informativo tem impacto na formação da opinião pública. Como você vê essa visibilidade em contraste com a credibilidade oscilante da mídia tradicional?
Pensando no jornalismo, podemos definir que ser legitimado e reconhecido como alguém que deve ter o direito de informar se dá pelo crédito institucional dos jornalistas, pela posição social que ocupam, pelo grau de engajamento com a informação, compromisso com a verdade e a manutenção do debate democrático.
Por sua vez, o que confere crédito aos influenciadores digitais não tem qualquer relação com a credibilidade jornalística. No caso deles, há uma espécie de acordo tácito entre produção e recepção que abre espaço para interferência e co-construção; diluição entre esferas públicas e privadas; e um discurso supostamente mais horizontal e menos hierárquico.
Além disso, há algo próprio dos influenciadores: eles emergem no digital. As dinâmicas da rede são constitutivas de sua prática e não há adequações, digitalizações, adaptações. Na busca por crédito, é como se os influenciadores já nascessem com vantagem frente a outros enunciatários. E é exatamente por isso que o debate “influenciadores versus jornalistas” é infrutífero. Um tiktoker, por exemplo, é legitimado ou recebe o direito à palavra porque faz um bom uso das ferramentas da plataforma — porque domina transições, edições, uso de áudios e de narrações velozes. A credibilidade não se dá porque as audiências reconhecem neles responsabilidade cívica ou compromisso com a opinião pública.
RADAR ENTREVISTA 2
Quais limites diferenciam jornalistas profissionais de influenciadores digitais?
Ficou evidente que eles não influenciam apenas no consumo material, mas conduzem debates públicos, colocam pautas em circulação, amplificam debates e suprimem discursos. Pode uma influenciadora de moda e beleza falar sobre a Guerra na Ucrânia? Tudo bem os jovens se informarem sobre política por meio de influenciadores digitais de lifestyle?
Algumas práticas dos influenciadores digitais seriam consideradas amadoras no momento em que não há reconhecimento dos limites da própria atuação. Um arquiteto, por exemplo, sabe a hora de convocar um engenheiro para a obra. Mas amadores desconhecem limites porque não se sedimentam no paradigma da expertise — isto é, um grupo de práticas e saberes que sedimentam determinada profissão. Então, vemos diariamente indicações de treinos ou dietas sem qualquer formação em nutrição ou educação física. Nesses casos, trata-se de uma atuação amadora que finda em posturas questionáveis e, muitas vezes, irresponsáveis.
O que ampara esse tipo de prática é a credibilidade conferida pelos seguidores. A enunciação dos influenciadores está fortemente apoiada no testemunho em primeira pessoa. Para indicar produtos ou contar da própria vida, usam discursos semelhantes numa linguagem que mescla público e privado, pessoal e comercial. Assim, a indicação de sua dieta ou treino se dá sob a alegação de que se está “apenas dividindo um pouco da própria experiência com os seguidores!”. Da mesma forma, a influenciadora que explicou no Twitter sobre a Guerra na Ucrânia, afirmou fazer aquilo porque — como todo mundo — estava preocupada e queria entender o que estava acontecendo.
Ao mesmo tempo, o mercado de influência está em um momento altamente profissionalizado, sem espaço para a produção amadora — o que permite, inclusive, cobrança por mais responsabilidade. E como todo perfil profissional, o de influenciadores prevê certas competências e habilidades próprias.
Isso significa que não compartilhar dos preceitos do jornalismo não os torna amadores, no sentido pejorativo do termo. O caminho não parece ser, necessariamente, exigir que a blogueira falando sobre a Ucrânia convide especialistas para irem ao seu canal do YouTube dar uma aula sobre conflitos internacionais. Se ela fizesse isso, aí teríamos o suprassumo do influenciador responsável, ético e preocupado com o trabalho que faz. Seria o reconhecimento de que se ocupa um espaço importantíssimo na esfera pública. Mas o trabalho dela é outro. E será que a apuração ou a tratativa com fontes é tarefa dos influenciadores digitais? Se for, quais serão as do jornalismo? E, se não for, por que os chamaríamos de amadores?
RADAR ENTREVISTA 3
Como você avalia a disputa de espaço midiático entre influenciadores e jornalistas?
Há disputa de espaço nas redes com todos os tipos de enunciadores. Essa é a economia da atenção, sustentada por uma moeda escassa e valiosa, a finita atenção dos públicos.
A visibilidade parece ser mais facilmente integrada ao trabalho dos influenciadores e mais dificilmente conquistada pelos jornalistas e seus veículos. Ainda assim, o problema não é a influenciadora que aborda a guerra na Ucrânia sem conhecer de conflitos internacionais. O problema é aquela informação ser o bastante. E um seguidor lê um tuíte da sua influenciadora favorita sobre o conflito e se dá por satisfeito; é aí que falhamos como jornalistas.
A influenciadora pode ser a desencadeadora de uma busca. Mas esse seguidor opta por parar ali porque não confia na mídia? Não conhece veículos que tratem do tema? Ou porque foi engolido pela lógica veloz e inebriante das redes? Esses são os desafios do jornalismo.
Há espaço para jornalistas e para influenciadores, mas há prejuízo para a nossa sociedade quando o consumo midiático dos públicos tem começo, meio e fim nos influenciadores. E acredito que cabe ao jornalismo retomar esse espaço com o passo mais básico de todos: dizer qual o seu papel na sociedade. É preciso retomar essa conversa ou tê-la pela primeira vez com uma geração que se alfabetizou midiaticamente por meio do consumo de influenciadores digitais.
RADAR ENTREVISTA 4
Por fim, o que jornalistas podem aprender com influenciadores digitais?
Como fazer bom uso das plataformas. Não significa que toda jornalista deverá ser um pouco “blogueirinha”, expressão geralmente usada para se referir — de forma pejorativa — a alguém que tem usado as redes para falar da própria profissão. Fazer bom uso das redes é também entendê-las como ferramentas de divulgação, como espaço para se alcançar públicos específicos. Enquanto o trabalho dos influenciadores se dá integralmente nas plataformas, o dos jornalistas não necessariamente. As plataformas podem ser um caminho para o diálogo com os públicos. Observar o que os influenciadores estão fazendo é cortar caminho nos processos de experimentação e inovação no jornalismo. Também acredito muito que jornalistas e influenciadores podem trabalhar juntos, com objetivos comuns. O projeto Reload é um ótimo exemplo disso.
PERFIL DO JORNALISTA 2021
A pressão de anunciantes, patrões e governos é o principal fator que compromete o jornalismo ético, segundo os próprios jornalistas. Sobrecarga de trabalho e falta de tempo vêm logo a seguir. Os dados são do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, estudo coordenado por Samuel Pantoja Lima (objETHOS), com participação de vários de nossos pesquisadores.
O jornalismo de soluções tenta oferecer respostas para mazelas sociais sistêmicas a partir de informações mais plurais. No entanto, uma análise de reportagens sobre saúde publicadas no The Guardian conclui que essa prática ainda não atinge a raiz dos problemas.
Afinal, quais são as motivações de quem acredita e espalha teorias da conspiração? Um traço de personalidade bastante comum é o narcisismo.
SECOS & MOLHADOS
Julian Assange está cada vez mais perto da extradição. Diversas entidades manifestaram-se preocupadas em uma live. Disponível em português.
Saiu o Digital News Report 2022, importante pesquisa do Instituto Reuters para Estudo do Jornalismo. A melhor síntese foi feita por Lívia Vieira no Farol. Comece por lá.
No mês do orgulho, que tal dicas para uma cobertura mais responsável sobre pautas LGBTQIA+?
Por que os jornalistas brasileiros não cobrem criticamente o STF? Rubens Valente responde para LatAM Journalism Review.
Aliás, a LatAM começou a publicar série sobre investigação e julgamento de casos de violência contra jornalistas na América Latina. Leia a primeira.
Não é aceitável nem pode ser esquecido o que se passou com Dom Philips e Bruno Araújo. Entidades jornalísticas expressam pesar e indignação.
Por falar nisso, a Folha voltou atrás de um off-the record prometido a Bruno, e publicou a entrevista que ele deu num simbólico 22 de abril. Justificável.
Jornalismo e democracia: o diabo mora nos detalhes, um artigo de Mariane Nava no objETHOS. Aliás, outra pesquisadora nossa — Denise Becker — participou do Intercom Sul.
PRF decretou 100 anos de sigilo no Caso Genivaldo. Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas — do qual fazemos parte — exige o fim desse segredo.
“Temos que resistir à sedução teatral do jornalismo neutro”. Entrevista com o produtor do documentário Endangered (Ameaçados de extinção).
Tribunal de Justiça de São Paulo retoma hoje julgamento do caso em que o presidente da República insinuou que uma jornalista trocava informação por sexo. Enquanto isso, tem juíza ganhando ação contra jornalista…
Não são só derrotas, gente! Numa semana trepidante para o Brasil, Marina Amaral, da Pública, mostra que o jornalismo deu um banho.
AGENDE-SE
Hoje é o último dia do 1º Colóquio Internacional sobre Desinformação que nossos parceiros da RNCD estão promovendo. Assista ao que já aconteceu.
Amanhã é o último dia para submeter resumos expandidos ao Ibercom, que acontece na Universidade do Porto (Portugal) em outubro.
Dois deadlines para amanhã também: Revista Brasileira Estudos da Mídia (para estudantes de graduação) e dossiê sobre desinformação da Culturas Midiáticas.
Journal of Digital Media & Policy recebe textos sobre regulação de plataformas na América Latina. Você pode enviar o resumo até 4 de julho e o artigo completo somente em novembro.
Em 8 de julho tem oficina da Fiquem Sabem e Themis sobre acesso à informação, gênero e direitos humanos.
Eventos pra não esquecer: o prazo do Intercom é até 11 de julho, enquanto que SBPJor recebe trabalhos até 31 do mesmo mês.
Dá para enviar até 15 de julho o seu artigo para o dossiê “Estudos de enquadramento na América Latina”, do periódico Sur le journalisme / About journalism / Sobre jornalismo.
O papel dos algoritmos e das plataformas digitais em contextos sociopolíticos é o tema de um dossiê a ser publicado pela revista Liinc. Prazo: 31 de julho.
Em setembro tem evento sobre novos modelos de jornalismo.
“Acabar com a impunidade de ataques a jornalistas” é o tema de um simpósio internacional organizado pela Universidade Brigham Young, em novembro, virtualmente. Leia a chamada em português e submeta a sua proposta de apresentação até 15 de setembro.
Dairan Paul & Rogério Christofoletti assinam mais esta edição. Eles perceberam que a próxima chega em 13 de julho, e já será a segunda metade do ano. 😱
Esta é uma realização do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.
O caso da jovem atriz Klara Castanho é lamentável. Aquilo não é jornalismo.