Credibilidade e a difícil arte de evitar tiros nos pés
Edição 97: perguntas incômodas + carreiras de jornalistas brasileiros + cursos e chamadas de revistas acadêmicas
Olá, assinante!
Não é à toa que a gente fala tanto de credibilidade jornalística nesta newsletter. Sem confiar nas informações, quem irá consumi-las? A criadora do Trust Project, Sally Lehrman, até acha que a confiança na mídia melhorou ultimamente, mas falta muito ainda.
Outro nome importante do jornalismo, Alan Rusbridger, falou da necessidade de reconstruir a credibilidade junto ao público. O ex-editor do The Guardian tem razão em muito do que diz, mas ele mesmo está sendo questionado. Assumiu um cargo numa equipe de apoio ao Facebook e, para espanto de muitos, vem alardeando que as big techs não são o mal encarnado contra o jornalismo. Como se não bastasse, sua presença na comissão britânica Futuro da Mídia está sendo eticamente contestada.
No Brasil, jornais que dizem combater desinformação publicaram anúncios defendendo “tratamento precoce”. Um tiro no pé.
Tanto lá quanto cá, o recado é um só: credibilidade tem a ver com coerência, transparência, autonomia e compromisso genuíno com esses valores.
DUAS CANOAS
Tião Bocalom, prefeito de Rio Branco (AC), demitiu o jornalista João Renato Jácome no comecinho do mês. Demissão de jornalista é infelizmente tão comum que não deveria ser notícia, mas esta merece.
Jácome, que era chefe de Gabinete na Secretaria de Meio Ambiente, estava de folga e foi cobrir como freelancer a visita do presidente da República ao Acre. Fez uma pergunta que irritou Jair Bolsonaro durante uma coletiva. Quis saber sobre rachadinhas e o senador Flávio Bolsonaro.
Aliado do presidente, o prefeito Bocalom exonerou Jácome justificando que comissionados não têm folga e que ele não podia estar frilando àquela hora. O jornalista se disse triste e surpreso, pois “estava trabalhando”. Fenaj e o sindicato local pediram a reintegração do profissional.
O caso Jácome ilustra como é precária a posição do jornalista que se divide entre atuar como assessor de imprensa e como repórter (freelancer ou empregado). Esta é uma prática comum e conhecida da categoria, e que afeta indiretamente nossa credibilidade. O risco é estar diante de um conflito de interesses, e os empregadores - políticos ou não - vão pressionar e esperar que o jornalista atenda às suas expectativas de lealdade. Ninguém consegue se equilibrar muito tempo com um pé em cada canoa. Uma hora, elas rumam para lados diferentes e já sabemos quem costuma se dar mal…
NOSSA COZINHA
Março começou agitado e você não conseguiu passar no site do objETHOS pra conferir as novidades? Não se preocupe, ajudamos!
Vanessa Pedro lembra a sempre necessária Hannah Arendt. Se narrar pode ser uma forma de cura, que tal o jornalismo aproveitar este primeiro ano de enfrentamento da pandemia para revisar suas formas de contar histórias?
Kalianny Bezerra escreve sobre a tensão permanente entre a busca por lucro e a necessidade de manter a confiança do público. Você lembrou do caso dos anúncios nos jornais daquela associação médica defendendo “tratamento precoce"? Pois é…
HÁ VAGAS
Quer fazer mestrado ou doutorado em jornalismo numa das principais universidade do país? O Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC tem inscrições abertas até dia 12, depois de amanhã. São 26 vagas, e a metade delas é destinada a ações afirmativas: pessoas pretas, pardas, indígenas, quilombolas, travestis, transexuais, deficientes e refugiados. Os cursos são públicos e gratuitos, e não há cobrança de taxa de inscrição. Todas as etapas de seleção serão feitas a distância por causa da pandemia.
Quem sabe você não vem trabalhar com a gente? O objETHOS tem cinco vagas…
RADAR
Quais experiências e escolhas marcam a trajetória dos jornalistas brasileiros? Algumas respostas podem ser encontradas no mais novo livro de Fábio Pereira, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).
Em As diferentes maneiras de ser jornalista (disponível aqui na íntegra), são analisadas as carreiras profissionais de 32 trabalhadores. A amostra generosa inclui tanto os que ingressaram no mercado durante os anos 1970 como os mais novos, de 2010.
Mesmo evitando generalizações apressadas, Pereira encontra pontos em comum nas histórias de vida dos entrevistados. Quatro destaques:
jornalistas formados principalmente na década de 2000 se deparam com um mercado de trabalho já bastante saturado, o que dificulta o início de carreira;
ser estagiário é comum, e a passagem por diversas experiências é frequente, mesmo com acúmulo de funções ou baixa remuneração. Os jornalistas justificam ser para “criar contatos”, “aprender” e “demonstrar interesse” aos empregadores;
parte dos entrevistados com menos de 35 anos reclama da falta de perspectiva na área. Outros da mesma faixa etária ocupam posição estável na carreira, satisfeitos por trabalhar com o que gostam;
a hora de abandonar a carreira e ingressar em outra profissão costuma vir quando jornalistas não enxergam mais possibilidades de ascensão. É também associada a preocupações que aumentam com o tempo, como educação dos filhos, qualidade no ambiente de trabalho e segurança na vida pessoal e familiar.
O livro de Pereira é uma contribuição para os estudos em sociologia do jornalismo e identidade profissional. Gostou e quer ler mais? Na newsletter #88, comentamos outra pesquisa sobre trajetórias de jornalistas, dessa vez assinado por Camilla Tavares, Cintia Xavier e Felipe Pontes. Leia aqui!
JORNALISMO MALÉFICO
Liberdade de imprensa. Dois artigos sobre este conceito tão caro ao jornalismo. Estudo correlaciona a deterioração nessa tal liberdade com fragilidades do sistema econômico em 97 países. E em Uganda, pesquisa mostra como jornalistas se organizam para trabalhar sob repressão do governo.
Tragédia & tragédia. Cansado de ler tanta notícia negativa nos jornais? Rodrigo Lima e Anderson Romanini explicam: o “mal” é um valor que condiciona o jornalismo.
Jornalismo digital. Edição temática da Digital Journalism sobre pesquisas desenvolvidas na América Latina.
Crise migratória. Liliane Brignol e Guilherme Curi propõem repensar o termo, em defesa de uma cobertura ética e humanitária sobre o fenômeno da mobilidade humana.
SECOS & MOLHADOS
Vem aí uma pesquisa que vai atualizar o perfil dos jornalistas brasileiros. Quem coordena esse esforço gigante é Samuel Lima, um dos coordenadores do objETHOS. Outros pesquisadores da casa também estão envolvidos.
Natalia Viana terminou de contar o que testemunhou e viveu no ano em que o WikiLeaks mudou o mundo. Confira os 11 episódios dessa aventura.
Intervozes produziu um documento sobre desinformação para a Relatoria Especial de Liberdade de Opinião e Expressão da ONU. É uma importante contribuição brasileira para o debate global.
Chris Cuomo é um destacado jornalista da CNN, e seu irmão Andrew é governador de Nova York. O primeiro entrevistou o segundo recentemente, o que gerou discussões sobre ética jornalística. Veja na Variety, The Guardian e CNY.
Tomás Delclós reflete sobre o linchamento moral do fotojornalista Kevin Carter, aquele da conhecida foto do abutre e da frágil garotinha no Sudão.
A equipe da newsletter Farol Jornalismo voltou de férias. Assinem e apoiem.
Meios privados devem receber verbas públicas? Quem coloca o dedo na ferida é o perspicaz German Rey.
Baixe o livro Ciberfeminismos 3.0, organizado por Graciela Natansohn (UFBA).
Artigo 19 lançou revista semestral sobre liberdade de expressão. Baixe!
Na Austrália, a temperatura baixou entre jornalismo e big techs. Na Índia, não. Um meio independente está contestando as Diretrizes Intermediárias e Código de Ética da Mídia, anunciadas pelo governo e que pretendiam ajustar o cenário.
O jornalismo está em crise? Rogério Christofoletti conversa com Vitor Struck neste podcast da Folha de Londrina.
Parceiros da Red Ética reativaram o Consultório Ético, que agora tem podcast e é capitaneado pelas jornalistas Yolanda Ruiz e Mónica González.
Por falar em liderança feminina, Reuters Institute publicou estudo sobre a presença de mulheres em postos de comando em 12 mercados jornalísticos, Brasil inclusive. Elas mandam pra valer em apenas 22% das redações.
Repórteres Sem Fronteiras aproveitou o Dia Internacional da Mulher para lançar o relatório O Jornalismo Frente ao Sexismo. Fala de risco, das profissionais na linha de frente e de consequências para o jornalismo.
E a newsletter Cajueira indicou várias iniciativas de jornalismo independente no Nordeste sob o comando de mulheres. Leia e aproveite para assinar.
Entrevistar celebridades parece fácil, mas não é. Oprah Winfrey mostrou como se faz, analisa a PBS. As declarações de Harry & Meghan à “rainha da mídia” provocaram alguns tremores de terra no Palácio de Buckingham.
Falando no formato, estreou semana passada o programa de entrevistas da Abraji. Rubens Valente foi o primeiro convidado. A entidade também promoveu na segunda-feira o Seminário Mulheres no Jornalismo, com transmissão no YouTube. Mais informações aqui.
A grande imprensa ainda ameniza o discurso pró-ditadura de Bolsonaro, critica Fabiana Moraes no The Intercept Brasil.
AGENDE-SE
Oportunidade! Até dia 31 de março, jovens jornalistas podem se inscrever para bolsa de estudos na Alemanha.
Tem mais bolsa de estudos no programa de Diversidade Racial, do Nexo, voltado a pessoas negras e estudantes de jornalismo.
Um curso gratuito sobre ética no jornalismo de dados com Bárbara Libório, Fernanda Campagnucci, Juliana Dal Piva, Flavia Lima e Guilherme Amado. As aulas começam na próxima semana!
O periódico Chasqui recebe até 25 de março textos sobre redes digitais como espelhos sociotécnicos da Iberoamérica.
Essa é a mesma data da próxima Âncora - Revista Latinoamericana de Jornalismo, com temas livres. E também dos grupos de trabalho da Compós.
Na revista Paulus, chamada de textos para um dossiê sobre comunicação, ética e ressignificação do humano. Submissão de artigos até dia 31 deste mês.
Congresso Internacional Comunicación y Pensamiento recebe propostas de texto até 6 de abril. Tema? A revolução dos prosumers: youtubers e instagramers.
Jornalismo audiovisual é o tema da próxima Interin. 30 de abril é a data limite para enviar seu artigo.
Edição da newsletter:
Dairan Paul
&
Rogério Christofoletti
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A próxima chega só no outono. Nem demora, vai! É dia 24!
Este a newsletter é um produto do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.