Os jornais e a armadilha do Topa Tudo Por Dinheiro
Edição 96: Anúncios inoportunos + Facebook sem notícias + referências de ética jornalística + eventos variados
Domingo à noite, década de 1990, televisão ligada. As famosas pegadinhas protagonizadas por Ivo Holanda eternizaram o programa Topa Tudo por Dinheiro, apresentado pelo dono da casa. Jogando cédulas em formato de avião para a plateia, Silvio Santos seduzia o público com uma pergunta simples: quem quer dinheiro?
Não, você não está na newsletter errada. Um episódio desta semana nos lembrou que topar tudo por dinheiro pode ter sérias consequências - como o atropelo dos princípios éticos no jornalismo. Quer entender melhor? Segue o fio!
QUEM QUER DINHEIRO?
A treta: Folha de S.Paulo e O Globo publicaram ontem, 23, nas suas edições impressas uma propaganda de meia página favorável ao “tratamento precoce” contra a Covid. A (farta) verba veio da Associação Médicos pela Vida e foi espalhada também em outros importantes jornais pelo país: Jornal do Commercio (PE), Estado de Minas (MG), Correio Braziliense (DF), Correio (BA), O Povo (CE) e Zero Hora (RS).
Já viu o problema, né? Além de não existir nenhum tratamento precoce cientificamente comprovado, muitos desses jornais integram um consórcio que combate a desinformação sobre a pandemia. Mas o topa-tudo-por-dinheiro pode custar caro, já que acende um alerta sobre a responsabilidade dos veículos.
Houve quem defendesse o anúncio sob o argumento da “liberdade de expressão”, como a Associação Nacional de Jornais. Já Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, chamou atenção para os limites éticos da publicidade. E Pedro Strazza lembrou que os departamentos comerciais dos jornais “não parecem carregar os mesmos valores dos editoriais”. No UOL, Leonardo Sakamoto criticou, e a Lupa não só fez checagem do anúncio - desmentindo várias informações -, mas também publicou editorial cobrando os jornais: “A luta contra notícias falsas não pode ser apenas um slogan publicitário (…) Precisa envolver também o setor comercial”.
Na noite de ontem, a Folha publicou uma matéria sobre o próprio anúncio. Disse tudo, menos o motivo que a levou a exibir o informe publicitário… De forma esquizofrênica, o jornal chegou a procurar a ANJ para ser fonte da matéria e nada de ouvir o próprio departamento comercial. Autocrítica? Nem sombra.
Perceba: não é só uma contradição ou um pequeno desacerto entre os departamentos comercial e editorial. Tem a ver com a credibilidade dos veículos, que é corroída aos pouquinhos por ações das próprias empresas jornalísticas…
Último ponto: num momento em que se discute a regulação de plataformas na difusão de fake news, o que pode ser feito em casos de desinformação publicada por jornais de referência?
CAIU A MÁSCARA!
Por anos, a rede social azul tentou nos convencer de que era um lugar acolhedor, habitado por gente bacana e bem intencionada. E que ela se preocupava com várias coisas, como democracia e jornalismo. Pois é, mas lá se foi o disfarce…
Na Austrália, depois de ficar enfurecido com o projeto de lei que obriga as plataformas pagarem por conteúdos jornalísticos reproduzidos, o Facebook decidiu retaliar e barrou todas as notícias por lá. Foi um ultimato! Antes dele, o Google também ameaçou deixar o país, mas voltou atrás e fechou contratos com um punhado de conglomerados de mídia.
Mas por que isso é notícia numa newsletter sobre ética jornalística?
Porque o episódio demonstra o apetite insaciável das plataformas e sua disposição para matar a mídia convencional por asfixia, drenando oceanos de verbas publicitárias do mercado e se recusando a pagar por conteúdos noticiosos. Sem independência financeira, o jornalismo não pode nem sonhar com independência editorial. Sem isso, dá pra esperar noticiário livre e autônomo?
É verdade, a novela ainda terá novos capítulos e precisamos acompanhar. O episódio australiano pode ser um inadvertido experimento social, segundo Rodrigo Ghedin, do Manual do Usuário. Ou pode mostrar o caminho para que governos retomem das big techs o papel de administrar democracias, como disse John Naughton. Democracias vibrantes e funcionais precisam de jornalismo independente, lembra o colunista do The Guardian. Pois é…
NOSSA ESTANTE
Tiramos o pó das prateleiras e atualizamos nossa bibliografia indispensável sobre ética jornalística. São mais de 200 livros em português, inglês e espanhol. Aliás, se você quiser sugerir algum título, escreva pra gente!
No site do objETHOS, temos livros de graça e análises fresquinhas, como a de Carlos Castilho - sobre jornalismo e curadoria - e a de Ricardo José Torres - sobre sigilo de fonte em megavazamentos de dados pessoais.
Você também pode ouvir Lívia Vieira discutindo o futuro do jornalismo no podcast Café da Manhã ou, quem sabe, se tornar um dos nossos pesquisadores.
RADAR
Na edição 94, comentamos um estudo assinado por três pesquisadores sobre o “jornalismo protocolar” da Agência Brasil, pertencente à Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Seguimos no tema, mas dessa vez com outro foco: os códigos editoriais de TV Cultura e TV Brasil.
Danilo Rothberg e Daniele Seridório analisaram manuais para descobrir se as funções e objetivos das emissoras seguem os princípios do jornalismo público. Uma das diferenças é como cada organização interpreta a noção de credibilidade. TV Brasil associa à “precisão”, “objetividade” e “compromisso com a verdade”. Já TV Cultura destaca o papel de jornalistas como mediadores que devem atuar com “isenção crítica”.
De forma geral, os documentos são vagos e indicam poucos caminhos práticos para alcançar os ideais que defendem.
Essa fragilidade é mais evidente quando comparada às normativas da BBC, emissora referência na radiodifusão pública. O extenso código editorial do veículo britânico - 215 páginas! - é gigante perto das singelas quatro dedicadas pela TV Cultura (no caso da TV Brasil, a diferença é menor: 75 páginas ao total).
Não é uma competição por volume de texto, claro. Tem a ver com detalhar padrões técnicos e éticos, discutir condutas morais e sinalizar direções. Como ressalvam os autores, “a BBC (..), ao defender a busca da imparcialidade devida, se assemelha às brasileiras, mas delas se diferencia ao contextualizar e detalhar procedimentos de busca de suas metas editoriais”.
GIRO DE ARTIGOS
Xô, doisladismo! Jornalistas alemães exercem papel mais ativo quando a pauta envolve antissemitismo, se posicionando a favor das minorias. Pesquisa qualitativa de Philip Baugut com 21 profissionais.
Impeachment em dois atos. Estudo sobre editoriais de O Globo sugere diferentes tomadas de posição do veículo em 1992 e 2016. Na crise que depôs Collor, o jornal foi omisso e pouco discutiu as repercussões do caso. Diferente de Rousseff, cuja remoção do cargo público foi legitimada pelo veículo por meio de argumentos econômicos.
Jornalismo nas periferias. A pesquisadora Caroline Pasternack entrevistou jornalistas da Agência Mural para discutir relações de trabalho e a frágil saúde financeira dos coletivos.
Marielle Franco. Os desdobramentos do assassinato da vereadora nos jornais Folha de S. Paulo e El País priorizaram canais de informação oficiais. Para Marcos Paulo da Silva e Ana Karla Gimenes, a cobertura não fez justiça à complexidade da pauta, se valendo da simplificação e personalização como estratégias retóricas.
Economia do jornalismo. Um modelo de negócio sem fins lucrativos pode servir de incentivo para novas práticas nas redações. Quem argumenta é David Ryfe, na Journalism Studies.
SECOS & MOLHADOS
Pelo menos 93 profissionais da imprensa brasileira morreram em decorrência da Covid-19 desde o início da pandemia. Estão entre as principais vítimas, segundo a denúncia da FENAJ.
Em outro report, as transformações nas redações depois do novo coronavírus.
E aí, já foi convidado para a Clubhouse? A rede social do momento impõe velhas questões sobre privacidade, vigilância e coleta de dados. Stefanie Silveira discute esses pontos na página do Nephi-Jor, grupo de pesquisa da UFSC.
Organizações como Abraji, Renoi e objETHOS questionaram decisão do TCU de não receber denúncias sobre transparência. Estamos de olho!
Agência Pública completou 10 anos. No melhor estilo let's remember, Natalia Viana conta como trabalhou com o WikiLeaks durante o megavazamento de 2010. A história parece um thriller em forma de newsletter semanal.
A Folha de S.Paulo apagou 100 velinhas. Alguns de seus ex-ombudsmans apontaram o que pode melhorar no jornal…
Há vinte anos, o jornal porto-alegrense Boca de Rua é feito por pessoas em situação de rua. Agora o veículo também está disponível para assinatura online.
Na Colômbia, aconteceu a quinta Cátedra de Ética Jornalística Javier Darío Restrepo, com o experiente Gumersindo Lafuente.
No México, Chile, Argentina e Brasil, caíram os índices de confiança no jornalismo.
Na Espanha, jornalistas discutiram riscos e potenciais no uso de Inteligência Artificial na profissão.
Em Angola, a Comissão de Carteira e Ética começou a entregar documentos de identificação profissional aos jornalistas.
Em Campinas, o Correio precisou publicar editorial reconhecendo um erro de cobertura e até pediu desculpas…
Em março, estreia um programa de entrevistas com jornalistas brasileiros…
El País atualizou seu famoso Libro de Estilo, um “contrato ético com os leitores".
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e a Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia (APD) denunciaram o jornalista Vladimir Netto na Comissão de Ética e de Conduta do Grupo Globo.
AGENDE-SE
Alô, professor/a: última semana para você responder a uma pesquisa mundial sobre ensino de jornalismo. Aqui.
Dia 2 de março tem aula inaugural do professor Muniz Sodré sobre jornalismo contemporâneo. Acompanhe no YouTube da UFSB, às 19h.
A próxima turma de trainees da Folha de S.Paulo será formada exclusivamente por pessoas negras. São aceitos profissionais de qualquer área, incluindo estudantes universitários. Inscrições até 21 de março.
Chamada aberta para a 3ª edição da revista Internet&Sociedade. Anote aí: 15 de março como data-limite!
Se você pesquisa desinformação, notícias falsas ou discursos de ódio, a chamada da Chasqui pode interessar. 25 de março é o prazo máximo.
Na Líbero, um dossiê sobre cinema e vídeo. Mas aquele seu artigo sobre ética e jornalismo também pode entrar: temáticas mais gerais são aceitas para avaliação. Até 22 de março.
Mesmo esquema na Cambiassu: a próxima edição será formada por artigos de temas livres, com prazo até 1º de abril. A data não é de mentira.
Várias chamadas que mencionamos na newsletter passada ainda estão valendo. Começando pelo dossiê da Radiofonias sobre rádios universitárias em tempos de ataques à ciência. Corra, porque é até 28 de fevereiro!
Na Liinc, edição especial sobre infodemia - desinformação, negacionismo científico, algoritmos racistas... Até 31 de março.
Já Pauta Geral publicará um número sobre jornalismo e histórias em quadrinhos. Chamada aberta até 10 de abril.
Geopolítica das comunicações no próximo dossiê da Eptic. Prazo de 30 de abril para textos sobre monopólios, plataformas digitais e direito à comunicação etc.
31 de maio é a data final para uma edição comemorativa ao centenário de Paulo Freire, na Comunicação & Educação.
Dois eventos: 6º Congreso Internacional de Ética de la Comunicación (resumos até 28 de fevereiro) e 15ª Conferência Brasileira de Mídia Cidadã (até 23 de maio).
Rogério Christofoletti
&
Dairan Paul
fecharam esta newsletter a distância, mas não veem a hora de aglomerar novamente. Isso não vai acontecer até a próxima edição em 10 de março. Snif!...
Este é um produto do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.