Olá, assinante!
Quando se fala de desinformação, quase nunca se assume a responsabilidade por espalhar conteúdos falsos ou fraudulentos. Em geral, imaginamos que essa operação perversa é feita a partir de um porão escuro bem longe de nós e por gente muito mal intencionada. Sim, existem fazendas de mentiras plantadas por aí e esquemas muito profissionais gerando riqueza e produzindo estragos. Mas os próprios meios jornalísticos podem contribuir para um ambiente encharcado de pós-verdade.
Uma das formas é a publicação de propaganda que não apenas promove uma marca ou ideia, mas deturpa o debate público. Foi assim há dois anos quando os maiores jornais do país publicaram anúncios defendendo o tratamento da Covid com medicamentos sem eficácia comprovada. A campanha era assinada por uma associação médica, mas soubemos depois que era bancada por uma fabricante de ivermectina!
Há outras modalidades mais disfarçadas de desinformação, como é o caso de conteúdos patrocinados. Com esse rótulo, pode-se, por exemplo, convocar um “especialista” para criticar a proibição de cigarros eletrônicos, ou ainda nos fazer acreditar que um grupo empresarial com sérias acusações de corrupção seja exemplo de “integridade e governança”. Mas isso não é informação jornalística, você pode argumentar. É verdade. Mas sob a rubrica de branded content podemos publicar qualquer coisa? Divulgar conteúdos não-verdadeiros contamina os que insistimos ser verdadeiros? Quanto isso pode afetar a credibilidade do jornalismo?
Em nosso site, Rogério Christofoletti fala de um espectro que ronda as redações do mundo todo: a crise de confiança no jornalismo. Janara Nicoletti aproveita a realização de um evento da Unesco sobre regulação das plataformas para frisar que os direitos humanos precisam ser a bússola dessa complexa e urgente tarefa.
E, já que falamos do objETHOS, não quer participar do processo de seleção do PPGJOR e correr o risco de trabalhar com a gente?
Na newsletter passada, listamos perguntinhas incômodas sobre inteligência artificial e ética jornalística. De lá pra cá, colecionamos derrapadas dos ChatGPT da vida: a IA pode ser uma máquina de mentiras de mídias governistas e pode até fraudar concursos de fotos!
Há quem veja na novidade um colorido parque de diversões, mas há quem se pergunte sobre o futuro do próprio trabalho ou questões mais espinhosas ainda…
Quatro perguntas a Marco Schneider, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do recém-lançado A era da desinformação – Pós-verdade, fake news e outras armadilhas (Editora Garamond):
No livro, o senhor afirma que a crise da verdade não é uma crise, mas um projeto. Na sua avaliação, qual é o papel do jornalismo nesse cenário?
De fato, eu faço essa afirmação, parafraseando uma sentença atribuída a Darcy Ribeiro sobre a crise da educação no Brasil. Mas a afirmação toca apenas em uma faceta do problema, que diz respeito ao fato velho e bem conhecido de que a produção deliberada da ignorância favorece o status quo, a dominação de classe, gênero e etnia. O papel do jornalismo é o mesmo de sempre: contribuir com o esclarecimento público, mediante a prática do bom jornalismo. Parece banal, mas é simples assim.
Em linhas gerais, é o que parte dos manuais de redação e dos códigos de ética: objetividade – da apuração à redação –, o que significa não somente não mentir e não produzir ficção, mas descrever com clareza e precisão determinados processos singulares do real histórico em sua devida complexidade, desvendando nexos causais não aparentes, contextualizando adequadamente os fatos… Bom jornalismo significa também não submissão a vieses corporativos, respeito aos direitos humanos, compromisso com o interesse público etc. Uma dificuldade suplementar que se apresenta no momento atual é uma crise crescente de credibilidade da imprensa. Essa crise não é só da imprensa, mas das autoridades cognitivas modernas: universidade, ciência, estado democrático de direito. Trabalho no livro a hipótese de que essa crise é resultado da crescente e efetiva subordinação de todas essas autoridades a interesses corporativos, devido ao fortalecimento por quase toda parte do neoliberalismo.
E o que o senhor sugere?
Eu sugiro no livro que está ocorrendo uma espécie de degeneração da sadia desconfiança nas autoridades que caracteriza o pensamento moderno, pelo menos desde a dúvida sistemática de Descartes (Princípio do Método), em uma mistura de ceticismo irrefletido e agressivo em relação a essas autoridades cognitivas modernas com uma credulidade frequentemente dogmática em autoridades cognitivas do tipo pós-moderno: religiosos midiáticos, demagogos fanfarrões de extrema direita, influencers palpiteiros etc. Então, se a hipótese estiver aproximadamente correta, o principal papel do jornalismo é simplesmente produzir bom jornalismo, tão necessário, e recuperar sua credibilidade. A questão é como fazê-lo diante da crise do modelo de negócios do velho jornalismo corporativo, diante de suas próprias contradições internas, sobretudo entre negócio e serviço de interesse público, e da concorrência implacável na economia da atenção gerada pelas plataformas digitais e seus fluxos informacionais caóticos, inumeráveis, ubíquos.
Em termos de economia política, eu apostaria num jornalismo público de qualidade, em regulações que favorecessem a democratização da informação, isto é, o pluralismo de vozes e a interdição de monopólios e oligopólios privados de comunicação, articuladas a ações de combate à desinformação que não se convertam em formas disfarçadas de censura. Tais ações precisam partir de uma compreensão da complexidade do fenômeno da desinformação, que tem implicações éticas, políticas e epistemológicas imbricadas, requerendo estudos de natureza transdisciplinar, envolvendo a comunicação, a ciência da informação, os estudos culturais e a filosofia.
O jornalismo é uma forma de conhecimento bastante particular, que se situa entre o senso comum e o saber especializado. Como podem o jornalismo e os jornalistas navegar num ambiente em que, em muitos casos, não há mais um senso comum compartilhado?
Esse ambiente exige que o jornalista possua uma formação acadêmica qualificada, que lhe permita compreender as razões pelas quais não há em certos ambientes um senso comum compartilhado. Exatamente por operar essa mediação entre senso comum e saber especializado, ele precisa conhecer essas fissuras, essas nuances, esses movimentos do senso comum. São as ciências sociais, da linguagem, da cultura que buscam explicar esses fenômenos.
Além disso, dado que o próprio saber especializado dessas ciências tampouco é estático ou está acima de polêmicas e controvérsias, o jornalista precisa conhecer pelo menos o básico dos estudos sociais da ciência e da epistemologia histórica. Some-se a isso um conhecimento sólido das redes sociais digitais, das tecnologias, dos agentes, dos interesses em disputa. Mais importante, ou tão importante, ele precisa também desenvolver um compromisso ético profundo, existencial, com a própria razão de ser da profissão, que é o esclarecimento público, numa perspectiva humanista, de combate a todas as formas de opressão e mistificação. Não pode ser imparcial nesse quesito e não pode estar do lado de quem oprime e mistifica.
De que maneiras é possível desenvolver, tanto nos profissionais do jornalismo como nos públicos, a competência crítica em informação, tão importante para discernir conteúdos sérios da desinformação?
O desenvolvimento da competência crítica em informação, que no meu entendimento engloba a educomunicação e as diversas modalidades de alfabetização ou literacia midiática, é teoricamente simples. É basicamente uma questão de estudo, de formação de leitores, espectadores, internautas, tiktokers críticos. Isso exige, num nível básico, conhecimento do que se costumava chamar das entrelinhas da notícia. Do subtexto, dos bastidores da notícia. E da publicidade, propaganda, de toda pregação em geral, laica ou religiosa. Dos interesses políticos e econômicos por trás dos discursos, que nem sempre serão vis. Das estratégias de convencimento, da retórica.
Num nível mais avançado, é preciso refletir sobre questões da ordem da crença, dos gostos, dos valores adquiridos, ou seja, adquirir noções de sociologia, antropologia, psicologia social. E, por fim, conhecer o melhor das teorias sociais críticas e das teorias críticas em comunicação e informação, que buscam articular os conhecimentos anteriores, sempre acompanhando as mudanças nos diversos ecossistemas infocomunicacionais existentes. Mudanças em sua economia política, nas tecnologias, nas linguagens. É claro que essa formação é gradual, irá variar se estivermos tratando do ensino básico ou superior, mas ela é necessária e precisa ser efetivada em escala. Isso requer políticas públicas de escala e de longa duração.
Em artigo publicado na Journalism Practice, Marília Gehrke, Marcelo Träsel, Álvaro Ramos e Júlia Ozorio analisam o jornalismo declaratório do primeiro ano da pandemia de Covid-19 nos jornais Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo e pelos portais G1, Terra e UOL.
A partir da análise de 111 títulos de 21 episódios de desinformação, os autores identificaram que os veículos, na maior parte das ocasiões, falharam em corrigir afirmações falsas feitas pelo então presidente do Brasil, mesmo quando iniciativas de checagem de fatos já haviam provado que o discurso era mentiroso. A análise demonstrou que 60,36% dos títulos apenas reproduziam as falas de Bolsonaro, e apenas 26,13% forneciam elementos de contexto. Em apenas 13,51% dos títulos consta que o presidente estava mentindo — ou seja, a mídia apenas reproduziu o discurso, sem fazer análise crítica ou contextualizar.
A partir dos resultados da investigação, os pesquisadores mostram que a imprensa, ao adotar o jornalismo declaratório como prática, pode, em muitos casos, contribuir para ampliar a desinformação.
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Na revista Mídia e Cotidiano, uma edição sobre comunicação e democracia na América Latina. Submissões até 04 de junho.
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Esta newsletter é uma realização do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), projeto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.
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